quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Meu desejo secreto para 2010

É o meu desejo pessoal mais fundo, o mais secreto, agora escancarado: em 2010, quero virar escritora de literatura. Alguns de vocês, porque são gentis e amigos, me dirão que já sou uma, que tenho livros publicados, que me leem, que gostam do que escrevo, etc. Sem modéstia: não escrevo mal, às vezes escrevo bem, resultado de algum talento e de muito exercício, pois passei a vida inteira escrevendo, como estudante ou professora. Sem dúvida é por escrito que melhor me comunico.

Mas, apesar de já ter publicado um romance e três livros para crianças, e de ter escrito alguns contos, além de diversos livros de história do Brasil, eu ainda não me sinto uma escritora de ficção. Onde em mim aquele compromisso interior, aquela chama que faz alguém largar tudo para escrever imaginações, eleger a escrita de ficção sua prioridade absoluta na vida, onde aquela necessidade doida de criar ou morrer, que leva a pessoa a encontrar disciplina e superar faltas? Onde a gana e a garra, onde a fé absoluta na própria arte, no poder transformador da minha escrita? Onde olhar/viver a vida e nela enxergar, a cada minuto, a outra vida, aquela criada pela livre associação de idéias e sensações e pela imaginação do artista?

Procuro isso em mim, e não encontro. Escrevo de forma intermitente, sinto uma preguiça mortal para escrever, não gosto do que escrevo — paro no meio —, me disperso entre várias coisas, não termino meus escritos com vistas à publicação… Cadê a escritora de ficção? Ela não se realiza!

Quando, porém, em alguma madrugada silenciosa, asculto a mim mesma, quando colo o ouvido atentamente sobre meu coração e fico muda, encontro, sim, a escritora. Entro em contato com meu próprio desejo de escrever, minha crença absoluta na imaginação, meu olhar criativo, sensível sobre o mundo, minha alegria em ler, em criar…

A escritora de ficção existe em mim escondida, opaca, embotada, em segundo plano. O quê a impede de desabrochar, exibir-se, realizar-se? Volto ao meu coração, escuto-o de novo, em busca da resposta. Ela vem direta, não deixa dúvida: o medo. Medo do quê? De tantas coisas! De errar, falhar, não corresponder à minha própria e altíssima exigência, ser criticada, enlouquecer… tantas coisas, que me confundem. E por aqui eu paro, pois isto é um blog, não um consultório psicanalítico.

Neste último dia de 2009, porém, de uma coisa eu sei: meu desejo de virar uma escritora de ficção tornou-se avassalador. Tem alguém aqui com imensa vontade de em 2010 escrever histórias imaginadas, de fazer disso o seu compromisso e o seu prazer maiores, o centro da vida nos próximos doze meses. 2010 será, sim, o ano em que libertarei a escritora, para que sem vergonha nem limites nem bom senso corra pelas areias do mundo. É o meu desejo.
[Imagem daqui]

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Neste Natal, um conto de Miguel Torga

[Meus amigos: para vocês, nesta época de Festas, envio um abraço caloroso e ofereço este conto de um dos meus escritores preferidos, o português Miguel Torga. Para mim, este pequeno conto exala essências do Natal, como simplicidade, acolhimento, mistério, epifania. Vale a pena entregar-se à sua magia.]

Um Conto de Natal

Miguel Torga

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

* Conheci este conto de Torga quando ainda era adolescente, e me encantei com ele. Reencontrei-o recentemente num e-mail enviado por Amélia Pais, a quem agradeço.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O encontro do sol, da água e da cidade


Para saber que encontro é este, clique aqui.

domingo, 15 de novembro de 2009

Tudo é tradução


Se pensarmos bem, tudo é tradução, ou seja, a maioria das atividades humanas consiste em transmitir uma ideia, uma impressão, uma canção, um poema, um objeto, um conhecimento de uma realidade para outra, em traduzi-los, em torná-los inteligíveis de um ambiente para outro, de um grupo de pessoas para outro. Quando dou uma aula, estou traduzindo um determinado conteúdo para os alunos. Se toco uma peça ao piano, traduzo, usando meus conhecimentos e técnica, uma peça que originalmente alguém compôs, em si também uma tradução dos sentimentos e ideias do seu compositor... a teia que vai se estabelecendo entre os humanos é quase infinita, nessas aproximações que fazemos, para nos comunicar.
Conheço poucos textos sobre tradução tão bons quanto este de Saramago. Referente à escrita e à tradução entre idiomas, foi no entanto concebido no sentido amplo a que me referi:

“Escrever é traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos […] para um código convencional de signos, a escrita, e deixamos às circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor, não a integridade da experiência que nos propusemos transmitir (inevitavelmente parcelar em relação à realidade de que se havia alimentado), mas ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser intraduzível, por exemplo, a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como o resto de um sonho que o tempo não apagará por completo.
O trabalho de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido “tradução”, isto é, uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural que não é a do tradutor, substanciada, essa percepção, num entramado linguístico e semântico que igualmente não é o seu. O texto original representa unicamente uma das “traduções” possíveis da experiência da realidade do autor, estando o tradutor obrigado a converter o “texto-tradução” em “tradução-texto”, inevitavelmente ambivalente, porquanto, depois de ter começado por captar a experiência da realidade objecto da sua atenção, o tradutor realiza o trabalho maior de transportá-la intacta para o entramado linguístico e semântico da realidade (outra) para que está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai. Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem “alquímica” em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido. O diálogo entre o autor e o tradutor, na relação entre o texto que é e o texto a ser, não é apenas entre duas personalidades particulares que hão-de completar-se, é sobretudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconhecer-se."


[José Saramago,
O Caderno de Saramago, 2/7/09]

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Abre aspas para a poesia


Amaresia

Magias e morfemas
beijam madrepérolas
no marulhar da nudez
dos teus passos nacarados
– búzio a cantar o mar –
vestindo rendas chuvas
organzas
espumas
e calemas...

Namibiano Ferreira

Na blogosfera descobri o fascínio, a força e a beleza da poesia de Namibiano Ferreira, poeta nascido no deserto do Namibe, Angola, atualmente morador em Norfolk, Inglaterra. Volto ao seu blog com frequência: seus versos me atraem irresistivelmente para o esplendor do espaço mágico do Namibe, aonde eu nunca fui, mas é como se conhecesse cada grão de areia, pois sinto o Namibe deste poeta como uma espécie de substrato mítico de onde viemos todos, e desde sempre. A poesia poderosa de Namibiano Ferreira — aqui representada por Amaresia, delicado poema de amor e mar, pois, pasmem, o Namibe também é mar — é minha contribuição para a blogagem coletiva "Abre aspas para a poesia", ótima iniciativa da Lunna, do Teorias Impossíveis, com o objetivo de encher a blogosfera de poesia.
*Imagem daqui

sábado, 31 de outubro de 2009

Uma velha que me contava histórias



[Embora os métodos educacionais tenham mudado, creio que as crianças de hoje sentem a mesma distância abissal entre a escola e a vida, como no tempo do grande poeta brasileiro Ascenso Ferreira. Curtam o poema, e me digam se concordam com essa minha opinião. Abraços!]

Minha escola

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.


Ascenso Ferreira. Catimbó (1927).
*Imagem daqui

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

À beira do Tejo


[Hoje acordei com saudades de Portugal. Imagens lindas e ternas do país e de sua gente me voltam, são tantas... Hoje acordei com saudades de Portugal. Para diminui-las, copio abaixo o poema deste jovem poeta brasileiro]

À beira do Tejo

Finjo não ver: a noite
me esconde, e não sei
mais o que é preciso.
Finjo que vou à janela
e grito os palavrões
habituais. Finjo ser
Fernando Pessoa,
a fingir as dores de si e de
todos em volta de si. Mas
finjo sem a mesma
convicção: não, não há como
ser Fernando Pessoa, e há
essa outra vida no além mar,
no depois. Finjo a inteira
consciência deste outro,
deste lado do Atlântico.
A essa hora da noite,
entretanto, finjo mais que tudo
o cigarro que jamais traguei.

Nilson Galvão

* Há mais poemas do Nilson Galvão aqui
** Imagem
daqui

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A escrita perfeita de Raduan Nassar


Ele publicou apenas duas pequenas novelas e um livro de contos, mas é um dos maiores escritores brasileiros. Filho de imigrantes libaneses, de família numerosa (10 irmãos), nascido em 1935 no interior de São Paulo, Raduan Nassar transferiu-se aos 20 anos, com a família, para a capital do Estado, onde se formou em Filosofia e estudou também Letras e Direito, mas sem concluir. Após a publicação de seus dois romances, na década de 1970, decidiu abandonar a literatura (seu livro de contos A menina a caminho, de 1994, reuniu textos escritos anteriormente). Desde então, dedica-se a atividades agrícolas numa fazenda que comprou no interior de São Paulo. Não dá entrevistas. Recebeu prêmios importantes, foi traduzido em diversas línguas e teve dois livros transformados em bons filmes do cinema brasileiro.

A prosa de Raduan Nassar é absolutamente única, seu estilo denso e opressor, inconfundível. Em seu texto não há uma palavra a mais, um termo equivocado, uma frase sobre a qual se possa pensar: “Isto poderia ser melhor escrito!”. Seus livros compactos contém apenas aquilo que devem conter: a escrita perfeita e toda a dor do mundo.

Li primeiro Um copo de cólera (1978), seu segundo livro, densa novela urbana em que um casal em crise expõe todos os aspectos de sua conturbada relação. Escrito em apenas quinze dias, é apontado por muitos críticos como “a novela essencial da literatura moderna e contemporânea brasileira”. Quase a seguir, me debrucei sobre seu primeiro livro, Lavoura arcaica (1975), extraordinária saga familiar de imigrantes árabes, narrada em primeira pessoa, onde se fundem incesto, amor e culpa. As duas leituras balançaram completamente meu mundo, e o fizeram de forma literal: provocaram-me vertigens, falta de ar e de sono, choro, garganta seca, sensação de soco no estômago, além daquele maravilhamento diante do poder dos textos canônicos. Até hoje alguns trechos me voltam à cabeça e ao coração, sem que eu peça: simplesmente residem em mim.

Foi este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível, seco, altamente inflamável; não me mexi, continuei o madeiro tenso, sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim, adivinhando uma pasta escura turvando seus olhos, mas a sombra indecisa foi aos poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no túnel do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela, em algum lugar da casa, imóvel, de asas arriadas, se encontraria esmagada sob o peso de um destino forte; ali mesmo, junto da porta, tirei sapatos e meias, e sentindo meus pés descalços na umidade do assoalho senti também meu corpo de repente obsceno, surgiu, virulento, um osso da minha carne, eu tinha esporas nos meus calcanhares, que crista mais sangüínea, que paixão desassombrada, que espasmos pressupostos!
(Raduan Nassar, Lavoura arcaica, S.Paulo: Cia. das Letras, 3ª ed. 1989, p. 102-3)

[Este texto integra a blogagem coletiva “Vida de Escritor”, proposta pela Vanessa, do ótimo blog Fio-de-Ariadne]
* Imagem: cena do longa-metragem Lavoura Arcaica (2001), direção de Luiz Fernando Carvalho, com Selton Mello, Simone Spoladore, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha e outros.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A menina e o menino (II)


[Para quem tá chegando agora, sugiro ler primeiro A menina e o menino (I)]
Este menino que veio do mar é um espanto. Não é como ela. Não se comporta, não fala baixo, não engole choro, não é ordeiro nem certinho, não brinca com bonecas, não come de boca fechada, não segura direito a colher nem age por trás, escondido. Nada disso. Este menino faz um barulho danado, dá beijo em todo mundo, atira os óculos do avô pela janela do apartamento e fica depois na ponta dos pés, espiando pra ver onde caíram, este menino trepa nos móveis, corre pela casa, desce correndo as escadas do prédio, empurra as pessoas, com a maior alegria espalha mel e farinha e ovos quebrados pelo chão da cozinha, ri muito, desenha nas paredes, briga, levanta a saia da empregada e sai em disparada, tranca-se no banheiro e esmurra a porta por dentro, chora alto .... Já mostrou pra ela, menina, que tem pinto e faz xixi em pé, e quer porque quer ver a xoxota dela.
Este menino é um enigma. Ela sente-se irresistivelmente atraída para ele, que brilha como o sol e ri como o mar, que dá beijos e abraços nas pessoas, enlaçando-as pelo pescoço. Ele sabe tudo o que ela ignora, ele transgride todas as normas a que ela, obediente, se submete por medo. Encantada e amedrontada, a menina não tem respostas.
A cada dia, sente-se mais ameaçada. O que este menino metido está fazendo aqui? Esta casa antes era só pra mim! Por que vovó agora anda toda derretida pra ele? Por que ele bate em mim?
O menino também sente ciúmes. E descobre rápido que é bem mais forte do que ela. Passa a chamá-la para a briga, a todo momento. Bate nela com força e dedicação, puxa-lhe os cabelos, cospe na sua cara, dá-lhe rasteiras, empurra-a contra a parede, arranha-lhe o corpo. Ela resiste como pode, mas perde todas. Impotente, chora, várias vezes por dia. Chora de dor, raiva, abandono, solidão, ciúme, impotência, humilhação. Joga-se na cama vazia dos avós, e chora. Nunca se sentiu tão infeliz na vida. Pela primeira vez, pensa em morrer.
As brigas constantes das crianças provocam confusão entre os adultos da família. Irritado por ver a filha apanhar todos os dias, o pai da menina tira satisfação do menino, e acaba por dar-lhe uns safanões. A mãe do menino não aceita ver seu filho tratado assim. Os dois discutem feio, o avô das crianças interfere, porém suas palavras pioram a situação. Assustada, a bebezinha começa a berrar, o que exaspera os adultos.
E o menino bate, e a menina chora. E a menina chora, e o menino bate, dia e noite, noite e dia. Dentro do apartamento onde todos se apertam, a tensão torna-se insuportável. Sufoca. A menina começa a chamar pela mãe. Se minha mãe estivesse aqui, isso tudo não acontecia. A gente tava morando na nossa casa.
O menino parte enfurecido para cima da menina, que foge correndo. Ele consegue encantuá-la contra a parede da sala. Ofegantes os dois, olham-se. A menina se apavora, pois vê na mão dele um cano de ferro, prestes a ser arremessado contra ela. Instintivamente, protege o rosto com os braços, encolhe-se toda à espera da dor ... que não vem. Abre os olhos, enxerga a tia imobilizando o menino, gritando para ela:
— Bate nele! Agora! Quero ver você bater nele!
Assustada, a menina sente muita vontade de fazer xixi, chora, quer fugir dali. Mas a tia insiste:

— Você tem de bater nele! Vamos, eu estou segurando ele, não tem perigo. Pode bater! Já!

E, como a menina ainda vacila:

— Se você não bater agora nele, eu é que bato em você!

A menina reúne toda a força que não sabe que tem, força que brota do ódio, do desamparo, do desejo de vingança, da rejeição,do ciúme, do instinto de sobrevivência, e parte pra cima do menino. Ele tenta chutá-la, mas a mãe imobiliza suas pernas, enquanto a menina bate, bate, bate, cospe, chuta, xinga, dá cabeçadas, bate, bate, bate, bate, cada vez mais forte, com uma fúria que nunca soube possuir. Está adorando. Sente-se triunfante, vingada, poderosa.

Bate até o menino chorar alto, que é também quando ela se cansa. A tia vai soltando o menino aos poucos. Surpreso, humilhado, doído, ele chora. A mãe abraça o filho com carinho e o beija, afagando-lhe os cabelos molhados de suor.

No dia seguinte, o menino ensaia nova surra. Mas, esperta e poderosa, a menina depressa lhe arranha o rosto. Ele recua.

Deste momento em diante, a menina e o menino tornam-se inseparáveis. Juntam forças, manhas e saberes. Não brigam. Aliam-se os dois contra o resto do mundo. Combatem e vencem todas as maldades. Juntos são rei e rainha, índia e cowboy, índio e índia, professora e aluno, desbravadores do velho oeste, alvos aterrorizados das injeções do Seu Petrônio da Farmácia, sol e lua, telespectadores, leitores e personagens de histórias em quadrinhos, cinéfilos, namorados, concha e água-viva, astronautas, vítimas de caxumba, sarampo e catapora, descobridores de fundos de mares e longínquas galáxias, fanáticos colecionadores de figurinhas, vendedores de distintivos do Partido Comunista e de papel alumínio retirado dos maços de cigarro, cúmplices de artimanhas, frequentadores de parques de diversão... Unidos contra o resto do mundo, são imbatíveis. Um sempre de olho no outro.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sophia de Mello Breyner, a força da poesia



Sophia de Melo Breyner Andresen (1919-2004) é considerada uma das maiores poetas portuguesas do século XX. Penso que é uma das maiores poetas de todos os tempos. Seu verso é claro, preciso, elegante, comovedor. No final de um poema dedicado a Sophia, escreveu Manuel Alegre:“Sua escrita é de nau e singradura / e há nela o mar o mapa a maravilha./ Sophia lê-se como quem procura / a ilha sempre mais ao sul.”

Nascida no Porto, de família aristocrática — por parte de pai, de origem dinamarquesa —, Sophia passou a infância e adolescência na cidade natal, na fabulosa Quinta do Campo Alegre (hoje simplesmente o Jardim Botânico do Porto), que pertencia à sua família. A infância e a natureza são dois temas preferenciais da poesia de Sophia. Outro tema central é o mar, presente em dezenas de poemas seus, como este

Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Já o poema a seguir recria de forma magistral um tema caro aos portugueses, o do mar ligado aos descobrimentos:

Descobrimento

Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado.
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios
O mar tomou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados


Em Lisboa, Sophia de Melo Breyner formou-se em Filologia Clássica (1939) — a herança clássica tornando-se essencial à sua percepção do mundo —, participou de movimentos literários, tornou-se amiga de poetas como Jorge de Sena e, ao lado deles, combateu a ditadura salazarista. Tinha coragem e um forte senso de justiça. Casou-se em 1946 com o advogado, jornalista e político Francisco Sousa Tavares, tendo cinco filhos, entre os quais o escritor Miguel Sousa Tavares.
Em 1974, Sophia apoiou a Revolução dos Cravos, que pôs fim ao salazarismo, e no ano seguinte foi eleita, pelo Partido Socialista, para a Assembléia Constituinte. Seu profundo senso de cidadania inspirou-lhe vida e obra. Não colocou sua poesia a serviço da ideologia, mas trouxe para os versos situações vividas no dia-a-dia da história do seu país. A dura situação do exílio, por exemplo, experimentada por tantos de seus amigos durante o salazarismo, a comovia:
Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades


Sophia sabia que, acima e além dos homens, das circunstâncias e das guerras, reinava o poder da poesia, único capaz de fazer reflorir a vida:

Poesia

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.


Sophia de Mello Breyner publicou numerosos livros de poesia a partir de 1945, entre eles Mar Novo (1958), Livro Sexto (1962), O Nome das Coisas (1977) e Ilhas (1989). Foi também contista, escrevendo ainda diversos livros para crianças. Recebeu prêmios importantes, entre eles, em 1999, o Prêmio Camões. Poucos foram tão grandes quanto ela:

Deus escreve direito por linhas tortas

Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol tua luz teu alimento.

domingo, 27 de setembro de 2009

A menina e o menino (I)


Ele irrompe de repente em sua vida, sem a menina estar preparada, sem saber que seu mundo vai virar de ponta-cabeça.
Surge no alto de um navio de sonho chegado de muito longe, ela espremida no cais junto com os avós e o pai, mínima diante daquele navio estupendo. Ele, um pontinho lá no alto, junto dos pais, da irmã e dos passageiros do navio magnífico, acenando para a multidão que se agita embaixo. Pasma diante da cena extraordinária, a menina não consegue sequer fechar a boca. Finalmente, raciocina. Exibe então um risinho superior, puxa a mão do pai e segreda no seu ouvido: Você pensa que me engana, mas eu já entendi: este primo que veio do mar não existe de verdade. Ele é de história.

Muda rápido de opinião, assim que o menino escapole da mão do pai, desce correndo a rampa do navio, pendura-se no corrimão de corda, e pimba! salta bem na frente dela. O riso daquele menino é alto, é barulhento, vem de dentro, da sua barriga, sai rolando através de uns dentinhos separados na frente da boca e se espalha pelo mundo, seu peito está ofegante, e seus olhos brilham, brilham como o sol atrás dele. O menino é quase do seu tamanho, mas é mais forte que ela. Ele põe as mãos na cintura, finca as pernas abertas no chão e ri, triunfante. A menina não sabe direito o que fazer, sorri de volta sem graça, baixa os olhos. Ele então a segura pelos ombros e a sacode inteira, com força. Todo o cais do porto gira em volta da menina. Ela ainda está tentando entender o que lhe aconteceu quando o menino beija depressa a avó, corre para o navio, espreme-se contra a multidão, sobe e desce toda a rampa e reaparece na sua frente, vermelho, suado, despenteado, sempre rindo. Diante daquela força da natureza, a menina enfim compreende: Este primo é de verdade. Aquele menino não só é real, como é o ser mais real que já conheceu. Ela fareja imediatamente o perigo.

Convivem os dois no apartamento apinhado de gente, os que já ali viviam — a menina, os avós, eventualmente seu pai —, com os recém chegados: o tio, a tia, a prima bebê, o primo. E os empregados, antigos e novos. Ninguém se entende direito, o que um quer não é o que o outro quer, cada um em momento diferente da vida, todos tendo de adaptar-se à nova realidade. Os tios recém chegados do exílio buscam os fios de uma meada interrompida, os avós, em geral ternos, recolhem-se, ressentidos da invasão doméstica, o pai, que acaba de sofrer o terrível golpe da doença da mulher, parece deslocado... Em meio à barafunda, a menina e o menino. Ele, partido entre dois mundos, falando tcheco e português. Ela, apavorada diante das súbitas mudanças. Um de olho no outro.
Vai começar o embate entre os dois.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

É o mar, é o mar, é o mar

Há dias em que ganhamos presente inesperado e belo, que nos comove. Hoje recebi um presente assim: este lindo soneto sobre o mar (de Maragogi) e sobre a relação do autor com o mar, escrito pelo poeta amigo Adriano Nunes, aquele que vive em versos, e dedicado a mim. Muito obrigada pela delicadeza, Adriano. Identifiquei-me com seu poema, pois tenho uma relação profunda, visceral, com o mar. Nasci no mar, vivo de mar, me alimento de mar, sou irresistivelmente atraída pelo mar: Janaína.
Maragogi
(Para a escritora Janaína Amado)
Agora Maragogi,
Agarro-me todo ao mar.
Aguento-o. Por tudo amar,
Água, sal, Sol, convergi
Ao teu brilho, abrindo o céu,
Abrigando todo o ver-
So: prata praia, rever-
Tendo-me em miragem, céu
No mar, mergulho profundo
Na paisagem, pensamento,
De passagem pelo mundo,
Ambíguo, grande tormento
Em que meus olhos circundo,
Prisma com que me alimento.
Adriano Nunes
*Imagem: o lindo litoral verde de Maragogi, no extremo norte do Estado de Alagoas, com suas piscinas naturais e seu fascínio.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Quando eu morrer


Quando eu morrer


Quando eu morrer
me enterrem em qualquer lugar
Tanto faz lodo rio fundo de mar
terra seca ribanceira lixão boca de lobo

Mas não me enterrem viva
Pelo amor de Deus não me enterrem viva

Nesses asilos de velhos terminais
meus olhos vão circular inutilmente
não reconhecerei um único objeto
uma respiração um contato um cheiro
Nesses leitos esquecidos de hospitais
nessas friagens solidões longínquas
Não façam de conta que não me escutam
enquanto por trás riem de mim

Pelo amor de Deus não me enterrem viva

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Não conseguir parar de ler



Já falei da delícia que é a leitura dos três volumes da coleção Milênio, escritos pelo sueco Stieg Larsson: Os homens que não amavam as mulheres, A menina que brincava com fogo e, recém traduzido no Brasil, A rainha do castelo de ar, todos pela Companhia das Letras. O autor, Stieg Larsson, morreu assim que entregou à sua editora o terceiro volume, aos 50 anos de idade. Sensacionais, inteligentes, com personagens incríveis — especialmente a hacker Lisbeth Salander —, os livros contêm histórias e intrigas contemporâneas que nos envolvem completamente, a ponto de não conseguirmos largá-los (isso, apesar dos inícios lentos, especialmente o do primeiro volume). Como disse uma amiga, o único defeito deles é nos tornar antissociais. Leiam o que mestre Vargas Llosa escreveu sobre estes livros como também sobre a natureza do gênero romance:

Acabo de passar umas semanas com todas as minhas defesas críticas de leitor arrasadas pela força ciclônica de uma história, lendo os três volumosos tomos de Milênio, umas 2.100 páginas, a trilogia de Stieg Larssson, com a felicidade e uma excitação febril com que, quando criança ou adolescente, li a série de Dumas sobre os mosqueteiros ou as novelas de Dickens e de Victor Hugo, perguntando-me a cada virada de página “E agora, o que vai acontecer?”, e demorando a leitura pela angústia premonitória de saber que aquela história vai terminar logo, deixando-me órfão. Que melhor prova de que o romance é o gênero impuro por excelência, o que nunca alcançará a perfeição que pode chegar a ter a poesia? Por isso é possível que um romance seja formalmente imperfeito, e, ao mesmo tempo, excepcional. Compreendo que a milhões de leitores do mundo inteiro ocorreu, está ocorrendo e vai ocorrer o mesmo que a mim, e somente deploro que seu autor, esse infortunado escritor sueco Stieg Larsson, tenha morrido antes da saber da fantástica façanha narrativa que realizou.
Mário Vargas Llosa

sábado, 5 de setembro de 2009

A menina e a contadora de histórias


Adora escutar histórias. Desde pequena, ouvidos bem atentos, corre a casa em busca de um sinal, mesmo leve, de que alguma história está sendo contada ou vai ser contada logo. Uma frase, um sorriso convidativo de um adulto, um "Era uma vez" e a menina já sai correndo toda feliz para junto de quem fala, senta-se no chão, tão atenta que seu peitinho magro nem respira direito, e fica ouvindo, ouvindo, ouvindo… Interrompe, também: No fim ela vai se salvar? Conta outra vez! Mas por que ele fez isso? Conta de novo! Esse Malasartes é sabido mesmo! E a menina cai na gargalhada, uma de suas raras gargalhadas, à mostra o brilho dos dentes miudinhos: encantamento do mundo.

Tem sorte, esta menina, pois na sua família muita gente adora inventar histórias, tem até quem vive de inventar histórias! Família de cabeça nas nuvens. A menina adora: aquele povo todo contando uma história atrás da outra, se divertindo, parece até que disputam quem inventa mais, e ela ali no meio ouvindo, sentada no chão ou deitada de bruços, pernas para cima, pezinhos balançando… pode passar a vida inteira assim, feliz no mundo das histórias.

Cada um tem um jeito diferente de contar. Às vezes, se confunde: Verdade ou mentira? O pai diz que ela nasceu de um rabo de bode. Rabo de bode? “É, um rabo de bode destamanhão que encontrei no chão. Achei bonito, levei pra casa, tratei dele… e ele virou você.” O tio se diverte com seu nome: “Sabe que Janaína é a rainha do mar? Tudo o que existe no mar, todas as plantas, todos os barcos, todos os animais obedecem a você." A menina está extasiada com o poder recém descoberto: Tubarão também me obedece? Já as histórias da mãe são povoadas de bichos, sono, colo, princesas, reis africanos, provêm de tempos imemoriais, a tataravó contou pra bisavó que contou pra avó que contou pra mãe dela que agora conta pra ela: “Su su su / neném mandu/ quem dorme na lagoa/ é sapo cururu”.
Mas a grande contadora de histórias da família é sem dúvida a tia. Ao contar uma história ninguém revira os olhos como ela, ninguém faz gestos tão variados — abre os braços, pula no meio da sala, corre pra debaixo da mesa, finge que chora —, ninguém possui tanta noção de ritmo, do momento certo de pausar, apressar, diminuir ou retomar a narrativa, ninguém canta assim no meio de uma história, ninguém como ela conhece as entonações de voz para os diversos personagens e para os momentos mais dramáticos da trama: “E então a princesa que dormia há cem anos abre os olhos, dá umas piscadinhas por causa da luz (pisca os olhos), e… (pausa dramática)… e… e diz assim (nova pausa; a tia passa os olhos pela audiência): E diz assim (voz trêmula e alta, expressão estremunhada) – Onde estou? Que mundo é este?” As histórias da tia não são apenas contadas, são também representadas.
A menina adora, ela e os primos criam até uma bolsa de valores de histórias: História da tia vale três pontos. História dos outros, um ponto. E se uma história dos outros for muito boa? Um ponto e meio! Mas sem dúvida a história preferida, a grande campeã entre as campeãs, a mais pedida e a mais ouvida das contadas pela tia — Vamos dar quatro pontos pra esta? — é A Coruja e o Gavião.


Mãe extremosíssima, a coruja cuida com amor e desvelo dos seus filhotes, que acha lindos: “A coruja, coitadinha/ Bem sabe que não é bela / Mas não crê que seus filhotes / Se pareçam com ela.” Uma grande ameaça, porém, paira sobre a coruja e sobre as outras mães da floresta: um gavião terrível invade os ninhos e come os filhotes (a menina mal pode acreditar que existam seres assim tão malvados no mundo). Muito aflita, mamãe coruja resolve procurar o gavião. Em desespero, pede-lhe pelo amor de Deus que não coma os seus filhotes, únicos bens da sua vida, suas únicas riquezas (a menina e os primos desfrutam o momento, sentindo-se importantes). O gavião, que no fundo não era mau sujeito, apenas faminto, sente pena da coruja, e termina por concordar em não lhe devorar os filhos. “Mas como vou reconhecer os seus filhotes?”, pergunta. A coruja não tem dúvidas: “Eles são os mais bonitos / da floresta inteira!” Bem intencionado, naquele dia o gavião devora os filhotes mais feios da floresta. Ao encontrar o ninho vazio, a coruja entende o que aconteceu e, em desespero, voa até o gavião, gritando-lhe revoltada: “Ó gavião traidor / Ó traidor!”



A esta altura, a tia já está de pé, fazendo-se ora de gavião, ora de coruja, expressando toda a dramaticidade da cena. Em meio a fortes, contraditórias emoções, em prantos a menina abraça a tia — ao fazê-lo, está abraçando todos os grandes contadores de história do mundo. A menina não quer abandonar aquele mundo inventado, pede: Conta mais uma?

domingo, 23 de agosto de 2009

Terra molhada


Verdes campos de capim gordura, imensidões até onde a vista alcança. Borboletas, passarinhos. Silêncio (mas escondido atrás do abacateiro, de vez em quando o lobisomem uiva). Três ou quatro curiós e uma coruja tardia. Madrugada alta, primeiras raias de sol no horizonte Uma paz. Uma alegria. Sapo cururu na beira do rio. Sem-vergonhas espalhadas e margaridas silvestres. Urutau, o chora-lua. A brisa que ondula a relva movimenta como o mar, sereia. Preguiça, sinhô, uruaê batô! Terra sem mal. Que vontade de cantar. Terra molhada de chuva. Terra preta entranhada de água, oferecida espalha sua força, úbere do mundo: cocanha. Minhoca comeu a terra; pássaro preto, a minhoca; urubu não comeu nada – magro, espreita de longe a antevisão do futuro.

Nessa hora (o dia não nasceu, a noite não morreu), menino pequeno e pai passeiam sozinhos pelo campo. Mãe em casa, esquentando o leite. Menino segura a mão imensa do pai. Sabe já que os rudes calos dele são sua âncora — flechas que ensinam o tempo, estrelas-guia nos labirintos do mundo: rochedos. Facão do pai corta o mato denso. Desbastando o mato, pai cria o horizonte.

Menino adora goiaba branca. Pai cata goiaba, dá para o menino. Sossega, menino — tem mais bicho não, pai mordeu a fruta antes, cuspiu fora o bicho. Menino saboreia a goiaba branca com os olhos fechados, tenros carocinhos da polpa derretendo na língua, a boca doce.

De repente menino escorrega no barranco, mas a mão do pai o segura rápido, puxando-o firme pra cima. Menino mais branco do que a goiaba. Pai ri do menino, menino ri do riso do pai, cachoeira. Pai gosta de rir do mundo, satisfação do menino! Sob os pés a terra mole cede, cobrindo os pés do menino e do pai. Gostoso enterrar os pés ao mesmo tempo, mexendo bem os dedos na terra fofa encharcada, barro da vida. Delicioso mergulho de pés, tornozelos, pernas até o fundo incerto da Terra, lá onde coabitam o terror com os mais secretos desejos. Segura caminhada que pai guia em meio aos matos do mundo.

O cheiro da terra molhada ganha o capim, o ar, as folhas das árvores tortas, impregnando para sempre cada poro do menino pequeno, que dele jamais se esquecerá. A este cheiro retornará sempre que a vida lhe for muito dura, faltarem-lhe força, coragem ou consolo ou, simplesmente, sempre que, distraído, baixar o vidro do carro em movimento após alguma chuva, e o mundo da infância entrar-lhe pelas narinas.

Janaína Amado
*Imagem daqui

domingo, 16 de agosto de 2009

Um ano de blog



Este blog está fazendo um ano. Jamais pensei que escreveria esta frase.

Foi minha amiga Maria Sampaio quem insistiu comigo pra criar o blog. Nunca havia pensado nisso, não tinha sequer (confesso!) paciência pra ler blogs... Mas ela insistiu com jeito, e de repente me encontrei blogueira. Estava numa fase de mudanças, recém chegada de uma temporada ensinando história nos Estados Unidos, com muita vontade de voltar à literatura mas sem saber direito como, ao mesmo tempo querendo começar algo novo mas sem saber exatamente o quê... Nasceu assim o acreditandonotruque, em meio às minhas incertezas e ao carinho amigo. Logo depois, para abrigar textos mais longos e literários, dos quais não desejo abdicar, criei este enredosetramas. Aos poucos, à medida que os e-amigos me ensinavam a lincar, colocar imagem, trazer vídeos do you tube etc. — sim, a ignorância aqui era e permanece crassa, ampla, irrestrita e resistente —, fui visitando outros blogs e recebendo leitores no meu.

Sou poeira na blogosfera, este universo infindo, tão ou mais poderoso do que o outro, o concreto. Neste ano, porém, descobri um mundo. Conhecidos que se transformaram em amigos, amigos que trouxeram novos amigos, gente de várias partes do mundo interessada nas mesmas coisas que eu, gente escrevendo muitíssimo bem, gente me incentivando e sendo incentivada, trocas, textos conduzindo a textos conduzindo a textos conduzindo a textos, o poder das imagens, poesia, rapidez, música, o conhecimento de experiências formidáveis feitas mundo afora, os aprendizados, diálogos, palavras apressadas, besteirol, risos, surpresas — muitos favos de mel, poucos travos de jiló —, participação em campanhas, minha literatura reaparecendo, ressurgindo em mim. Vontade de ousar, de cantar, de me jogar neste universo ao mesmo tempo instantâneo e duradouro, efêmero e influente, assustador e apaixonante, poderoso e frágil, ilusório, real.

Nesta blogosfera sempre a descobrir, que se comunica com o restante do mundo virtual e com o mundo concreto mas também representa um espaço específico, com regras próprias, neste admirável mundo novo o que mais me encanta é descobrir um grupo de sentimentos velhos como o mundo, tais como amizade, acolhimento, respeito pelo diálogo: amor, enfim.

No começo, de leitores eu só tinha Maria e alguns parentes. Depois, via meu primo Caco (o único lord da família), apareceram o Valter Ferraz, que inventou uma rádio, e sua mulher, a blogueira Aninha Pontes. A esses primeiros leitores dedico meu primeiro ano de blog. E, simbolizando todos vocês, meus leitores — vocês são a razão de ser do blog, sem vocês não há blog —, dedico este primeiro ano de blogagem também ao meu fiel, solitário, silencioso leitor ou leitora que vive em local marcado como “desconhecido” no meu contador de visitas. Sei apenas que me lê com frequência, de lá do extremo norte de Mato Grosso, perto de Sinop, em plena floresta amazônica.

Juro por Deus que, no segundo ano de blog, vou aprender a ser sucinta.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Literatura e precipício


«¿Entonces qué es una escritura de calidad? Pues lo que siempre ha sido: saber meter la cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura básicamente es un oficio peligroso. Correr por el borde del precipicio: a un lado el abismo sin fondo y al otro lado las caras que uno quiere, las sonrientes caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida. Y aceptar esa evidencia aunque a veces nos pese más que la losa que cubre los restos de todos los escritores muertos. La literatura, como diría una folclórica andaluza, es un peligro

(Texto transferido do ótimo blog português
Bibliotecário de Babel, de José Mário Silva)

Ninguém me resumiu tão bem a sensação que a literatura me traz, a vertigem, o perigo, o terror do precipício onde tudo é desconhecido e existe em permanente ebulição, onde um mundo turbulento é criado e recriado a cada instante, em contraposição ao sorridente, prazeroso, previsível mundo cotidiano. Na borda do precipício, irremediavelmente atraído por ele, encontra-se o escritor, este ser irresponsável.

O texto integra o Discurso de Caracas, que o grande escritor chileno Roberto Bolaño (1953 – 2003) leu ao receber, em 1999, o prêmio Rómulo Gallegos, por seu romance Os detetives selvagens, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e descrito pelo autor como uma carta de amor à sua geração. Um dos maiores escritores latino-americanos da segunda metade do século XX — há quem o considere um dos maiores de sempre, na América Latina —, Bolaño é autor dos romances Noturno do Chile e A Pista de Gelo, publicados no Brasil pela mesma editora, e de 2666, magnífico romance póstumo, ainda não lançado aqui (espera-se que a lacuna seja logo preenchida).

* Um bom ensaio introdutório sobre Bolaño está aqui.
*Repito a imagem que postei há algumas semanas neste blog, e que adoro. Trouxe-a daqui.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A menina e a mãe


Quando a menina pequena abre os olhos de manhã cedo, pergunta logo Cadê mamãe? Neste dia não tem resposta. Nunca mais terá resposta a essa pergunta. Mazi disfarça, diz que a mãe foi ali e volta já, mas o dia inteiro se passa e a mãe não volta. Irritada, inquieta, a menina não consegue brincar, chora, não tem apetite: Não quero comer esta porcaria!, joga o prato em cima de Mazi.
A menina percebe que alguma coisa está profundamente errada. Não sabe o que é, porém seu corpo alerta indica o perigo a rondar. Precisa da mãe ali para protegê-la, defendê-la. Chama por ela, chora por ela, mas desta vez a mãe não está ali junto, sumiu. Muito confusamente a menina intui que o problema é a mãe, a mãe é o problema, mas não entende nada, e chora.
Quando o pai enfim volta para casa, a menina voa em cima dele. Pula em seu pescoço, ansiosa: Cadê mamãe?, mas o pai a devolve ao chão. A menina percebe que o pai não olha para ela, o olho dele está saindo pela janela, longe. Parece muito cansado, o seu pai. Cadê mamãe, cadê mamãe?, insiste. A resposta chega como surra:
— Mamãe está doente. Vai precisar ficar no hospital.
Doente? Mas mãe não fica doente! Pela primeira vez, o pai sorri. “Fica, sim. Lembra quando ela sentiu aquela dor de garganta e teve de ficar na cama? Estava doente.” Mamãe tá com dor de garganta? Não. Tá com dor de dente? Não. Com dor de olho? De nariz? Andando atrás do pai, a menina vai repetindo a mesma pergunta, com a troca só da última palavra. Não estava nem na metade da sua lista de partes do corpo, quando o pai dá um berro: “Chega! Me deixa em paz!” tão súbito e alto e aterrador que a menina escorraçada dispara rumo à cozinha, vai chorar no colo de Mazi.
Nesta noite, ela consegue dormir só muito tarde, depois de Mazi cantar o sapo cururu várias vezes e seus olhinhos se fecharem de exaustão.
Sonha com a figura forte da mãe a seu lado, as duas caminhando juntas pela rua clara de sol, uma brisa que vem do mar levantando os cabelos delas, a sua mãozinha protegida dentro da mão firme da mãe. Ela observa admirada aquela mãe tão bonita, alta, elegante, empinada. Ri pra ela, de pura satisfação. Com mamãe, eu não tenho medo de carro. Não tenho medo de cachorro. Nem medo de sumir na multidão. Nem medo de esquecer o caminho de casa. Mamãe sabe. Mamãe conhece todos os caminhos. Mas no sonho então a mãe se vira para ela, rosto sério, e diz: “Estou perdida. Não conheço mais os caminhos.”
A partir daí a vida da menina vira confusão barafunda anarquia desarranjo, ela aos trambolhões de uma casa pra outra, o pai no trabalho ou no hospital, Mazi dando adeus e indo embora, um monte de gente estranha em volta, seu mundo de ponta-cabeça, todas as coisas, todas as pessoas fora de lugar, pesadelo.
A menina pergunta a cada hora Por que mamãe tá demorando tanto? Ninguém sabe lhe responder. “Como contar a uma menina pequena que sua mãe enlouqueceu?”, pensam. Quando mamãe vai voltar?, insiste. Ninguém conhece a resposta. À hora de dormir, no escuro, a menina passa devagar a ponta da fronha no rosto, enquanto pensa perguntas que não tem coragem de dirigir aos outros: Por que mamãe não me disse onde ia? Por que não me deu adeus, beijo, nada? Por que ela me deixou aqui sozinha?
No dia seguinte, retorna à pergunta habitual: Quando mamãe vai voltar?
Aquela mãe nunca voltou.
A mãe que sabia todos os caminhos nunca voltou.
A filha não a esquece. Como poderia, se a vida inteira tem caminhado ao seu lado na rua clara de sol, passo a passo com a silhueta sem carnes, com a evocação do vulto esbelto, elegante, altaneiro, a vida inteira assombrada pela convivência íntima com o enigma, com a ausência gigantesca que entretanto misteriosamente ainda é capaz de lhe indicar caminhos?

sábado, 1 de agosto de 2009

Sempre Adélia


Excelente escritora — poeta e contista —, Adélia Prado também desenvolve toda uma reflexão sobre o seu ofício e sobre a natureza da literatura. Abaixo, três pequenos trechos de uma entrevista dela ao repórter Julián Fuks (Folha de São Paulo, 14-11-2005), que me encantaram:


Origem e pertencimento:
"Eu passo a minha vida inteira clamando pela minha origem, para saber a quem pertenço, quem cuida de mim, quem responde por mim, quem me acode, quem me socorre. Quem tem piedade de mim.”

Religião e poesia:
“Os místicos só se expressam em paradoxos, só falam através de metáforas, porque falam do indizível. A poesia é a mesma coisa, e por isso o absurdo da linguagem poética, sua falta de lógica racional, sua obediência única ao estatuto interno da expressão.”

Poesia e biografia:
“A biografia é a linguagem por excelência. Então, na poesia, você está absolutamente salvo de tudo o que uma revelação autobiográfica pode lhe causar.”

terça-feira, 28 de julho de 2009

chuva e não, de Sidney Wanderley


Nascido em 1958 em Alagoas, ele já publicou vários livros de poesia, é poeta lido e respeitado entre poetas. Acaba de publicar novo volume — recém-saído do forno, ainda não oficialmente lançado —, o lindo, comovente chuva e não (Maceió: Edições Catavento, 2009), que, segundo o próprio Sidney, “reúne o que o autor suporta ler de quanto produziu em trinta e três anos de exercício literário”. Exageros à parte — há ótimos poemas do autor deixados de fora —, o volume traz o melhor do muito bom, la crème de la crème, poesia pra se guardar e reler sempre. Dois aperitivos:

Gavetas

Aquela foto sobre a cômoda da tia
fez-me esquecer o que ali eu procurava,
e que jazia (e talvez ainda jaza)
nas gavetas que o tempo desfaria.

— Pois as gavetas que por certo eu perseguia,
repletas de memórias, e de poesia,
era em mim que se fechavam e se abriam.

Chuva e não (II)

Há dias em que chove poesia.
Dias em que pinga.
Dias em que não.

Cautela para os primeiros.
Atenção para os segundos.
Dos últimos, o áspero
aprendizado do silêncio,
a dura ração da recusa.

Alheios a chuva e poesia,
os dias prosseguirão.

* Imagem daqui

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A menina e a boneca

A menina e a boneca brincam hoje aqui.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O mundo absurdo de Rui Manuel Amaral


Outro escritor português que tem me encantado ultimamente é o jovem Rui Manuel Amaral, nascido em 1973 na cidade do Porto. Publicou em 2008 seu primeiro livro, Caravana (Coimbra, Angelus Novus), que eu ainda não consegui adquirir, mas de que já gosto, pelos seus micro-contos absurdos que li na internet. Ele é também poeta, e dos bons.

Reproduzo abaixo um poema de Rui Manuel Amaral, encontrado neste ótimo blog da Amélia Pais, e um dos deliciosos micro-contos do autor, reproduzido deste excelente blog, do José Mário Silva.

Creio que Rui Manuel Amaral ainda é muito pouco conhecido no Brasil. Deliciem-se:

A noite está cheia de olhos.
Os olhos da noite observam os livros.
Os livros têm olhos verdes como certos bichos.
Os olhos da noite são azuis.
Sobre os olhos verdes dos livros
repousam os olhos azuis da noite.
Eu não vejo nada disto,
Apenas suponho.

Rui Manuel Amaral

O bibliotecário

Sempre ao fim da manhã e também ao fim da tarde, o bibliotecário recolhe os livros abandonados em cima das mesas. Aproveita para afagar as lombadas, ajeitar as folhas, limpar as capas, com gestos ternos e profissionais. Depois, e usando de todo o cuidado para não lhes causar algum desgosto ou perturbação, conduz cada livro ao seu exacto lugar. Com veemente paciência, procura então colocar cada volume na posição mais cómoda, alinhando a lombada com as restantes lombadas da mesma estante. As mãos tremem-lhe de tanto zelo.No entanto, e apesar do cuidado com que o bibliotecário se entrega à sua meticulosa tarefa, os livros dedicam-lhe uma profunda inimizade. Conspiram e manobram nas suas costas, desde o primeiro dia.O bibliotecário ouve-os falar e dá conta de tudo. Mas tanto se lhe dá porque ama verdadeiramente os livros. Porque ama-os apaixonadamente com todas as suas forças. Os livros, porém, não se deixam comover por estas demonstrações de afecto. Escarnecem do seu irritante desejo de agradar, lançam ofensas, urdem as piores armadilhas: os livros de história disfarçam-se de livros de botânica, os de medicina escondem-se sob as capas dos de teologia, e assim por diante.Ora, os mais acérrimos inimigos do bibliotecário são os livros de poesia. Já vi livros de poesia enterrarem os dentes, sem cerimónias, nas mãos pequenas do bibliotecário. Mais do que isso: já vi clássicos da poesia puxarem-lhe a língua, cuspirem-lhe na cara, chamarem-lhe falso Judas e lambe-cus. Felizmente, são dos menos solicitados pelos leitores. De facto, apesar dos seus esforços para atraírem as atenções, com as suas capas escandalosamente azuis ou desmesuradamente grandes, raras são as vezes em que saem do lugar. Por isso, o ódio cresce a cada dia que passa. E à noite, colados à sua imensa imobilidade, os livros de poesia sonham com a morte do bibliotecário.
Rui Manuel Amaral
*Imagem daqui

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