sábado, 31 de outubro de 2009

Uma velha que me contava histórias



[Embora os métodos educacionais tenham mudado, creio que as crianças de hoje sentem a mesma distância abissal entre a escola e a vida, como no tempo do grande poeta brasileiro Ascenso Ferreira. Curtam o poema, e me digam se concordam com essa minha opinião. Abraços!]

Minha escola

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.


Ascenso Ferreira. Catimbó (1927).
*Imagem daqui

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

À beira do Tejo


[Hoje acordei com saudades de Portugal. Imagens lindas e ternas do país e de sua gente me voltam, são tantas... Hoje acordei com saudades de Portugal. Para diminui-las, copio abaixo o poema deste jovem poeta brasileiro]

À beira do Tejo

Finjo não ver: a noite
me esconde, e não sei
mais o que é preciso.
Finjo que vou à janela
e grito os palavrões
habituais. Finjo ser
Fernando Pessoa,
a fingir as dores de si e de
todos em volta de si. Mas
finjo sem a mesma
convicção: não, não há como
ser Fernando Pessoa, e há
essa outra vida no além mar,
no depois. Finjo a inteira
consciência deste outro,
deste lado do Atlântico.
A essa hora da noite,
entretanto, finjo mais que tudo
o cigarro que jamais traguei.

Nilson Galvão

* Há mais poemas do Nilson Galvão aqui
** Imagem
daqui

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A escrita perfeita de Raduan Nassar


Ele publicou apenas duas pequenas novelas e um livro de contos, mas é um dos maiores escritores brasileiros. Filho de imigrantes libaneses, de família numerosa (10 irmãos), nascido em 1935 no interior de São Paulo, Raduan Nassar transferiu-se aos 20 anos, com a família, para a capital do Estado, onde se formou em Filosofia e estudou também Letras e Direito, mas sem concluir. Após a publicação de seus dois romances, na década de 1970, decidiu abandonar a literatura (seu livro de contos A menina a caminho, de 1994, reuniu textos escritos anteriormente). Desde então, dedica-se a atividades agrícolas numa fazenda que comprou no interior de São Paulo. Não dá entrevistas. Recebeu prêmios importantes, foi traduzido em diversas línguas e teve dois livros transformados em bons filmes do cinema brasileiro.

A prosa de Raduan Nassar é absolutamente única, seu estilo denso e opressor, inconfundível. Em seu texto não há uma palavra a mais, um termo equivocado, uma frase sobre a qual se possa pensar: “Isto poderia ser melhor escrito!”. Seus livros compactos contém apenas aquilo que devem conter: a escrita perfeita e toda a dor do mundo.

Li primeiro Um copo de cólera (1978), seu segundo livro, densa novela urbana em que um casal em crise expõe todos os aspectos de sua conturbada relação. Escrito em apenas quinze dias, é apontado por muitos críticos como “a novela essencial da literatura moderna e contemporânea brasileira”. Quase a seguir, me debrucei sobre seu primeiro livro, Lavoura arcaica (1975), extraordinária saga familiar de imigrantes árabes, narrada em primeira pessoa, onde se fundem incesto, amor e culpa. As duas leituras balançaram completamente meu mundo, e o fizeram de forma literal: provocaram-me vertigens, falta de ar e de sono, choro, garganta seca, sensação de soco no estômago, além daquele maravilhamento diante do poder dos textos canônicos. Até hoje alguns trechos me voltam à cabeça e ao coração, sem que eu peça: simplesmente residem em mim.

Foi este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível, seco, altamente inflamável; não me mexi, continuei o madeiro tenso, sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim, adivinhando uma pasta escura turvando seus olhos, mas a sombra indecisa foi aos poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no túnel do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela, em algum lugar da casa, imóvel, de asas arriadas, se encontraria esmagada sob o peso de um destino forte; ali mesmo, junto da porta, tirei sapatos e meias, e sentindo meus pés descalços na umidade do assoalho senti também meu corpo de repente obsceno, surgiu, virulento, um osso da minha carne, eu tinha esporas nos meus calcanhares, que crista mais sangüínea, que paixão desassombrada, que espasmos pressupostos!
(Raduan Nassar, Lavoura arcaica, S.Paulo: Cia. das Letras, 3ª ed. 1989, p. 102-3)

[Este texto integra a blogagem coletiva “Vida de Escritor”, proposta pela Vanessa, do ótimo blog Fio-de-Ariadne]
* Imagem: cena do longa-metragem Lavoura Arcaica (2001), direção de Luiz Fernando Carvalho, com Selton Mello, Simone Spoladore, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha e outros.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A menina e o menino (II)


[Para quem tá chegando agora, sugiro ler primeiro A menina e o menino (I)]
Este menino que veio do mar é um espanto. Não é como ela. Não se comporta, não fala baixo, não engole choro, não é ordeiro nem certinho, não brinca com bonecas, não come de boca fechada, não segura direito a colher nem age por trás, escondido. Nada disso. Este menino faz um barulho danado, dá beijo em todo mundo, atira os óculos do avô pela janela do apartamento e fica depois na ponta dos pés, espiando pra ver onde caíram, este menino trepa nos móveis, corre pela casa, desce correndo as escadas do prédio, empurra as pessoas, com a maior alegria espalha mel e farinha e ovos quebrados pelo chão da cozinha, ri muito, desenha nas paredes, briga, levanta a saia da empregada e sai em disparada, tranca-se no banheiro e esmurra a porta por dentro, chora alto .... Já mostrou pra ela, menina, que tem pinto e faz xixi em pé, e quer porque quer ver a xoxota dela.
Este menino é um enigma. Ela sente-se irresistivelmente atraída para ele, que brilha como o sol e ri como o mar, que dá beijos e abraços nas pessoas, enlaçando-as pelo pescoço. Ele sabe tudo o que ela ignora, ele transgride todas as normas a que ela, obediente, se submete por medo. Encantada e amedrontada, a menina não tem respostas.
A cada dia, sente-se mais ameaçada. O que este menino metido está fazendo aqui? Esta casa antes era só pra mim! Por que vovó agora anda toda derretida pra ele? Por que ele bate em mim?
O menino também sente ciúmes. E descobre rápido que é bem mais forte do que ela. Passa a chamá-la para a briga, a todo momento. Bate nela com força e dedicação, puxa-lhe os cabelos, cospe na sua cara, dá-lhe rasteiras, empurra-a contra a parede, arranha-lhe o corpo. Ela resiste como pode, mas perde todas. Impotente, chora, várias vezes por dia. Chora de dor, raiva, abandono, solidão, ciúme, impotência, humilhação. Joga-se na cama vazia dos avós, e chora. Nunca se sentiu tão infeliz na vida. Pela primeira vez, pensa em morrer.
As brigas constantes das crianças provocam confusão entre os adultos da família. Irritado por ver a filha apanhar todos os dias, o pai da menina tira satisfação do menino, e acaba por dar-lhe uns safanões. A mãe do menino não aceita ver seu filho tratado assim. Os dois discutem feio, o avô das crianças interfere, porém suas palavras pioram a situação. Assustada, a bebezinha começa a berrar, o que exaspera os adultos.
E o menino bate, e a menina chora. E a menina chora, e o menino bate, dia e noite, noite e dia. Dentro do apartamento onde todos se apertam, a tensão torna-se insuportável. Sufoca. A menina começa a chamar pela mãe. Se minha mãe estivesse aqui, isso tudo não acontecia. A gente tava morando na nossa casa.
O menino parte enfurecido para cima da menina, que foge correndo. Ele consegue encantuá-la contra a parede da sala. Ofegantes os dois, olham-se. A menina se apavora, pois vê na mão dele um cano de ferro, prestes a ser arremessado contra ela. Instintivamente, protege o rosto com os braços, encolhe-se toda à espera da dor ... que não vem. Abre os olhos, enxerga a tia imobilizando o menino, gritando para ela:
— Bate nele! Agora! Quero ver você bater nele!
Assustada, a menina sente muita vontade de fazer xixi, chora, quer fugir dali. Mas a tia insiste:

— Você tem de bater nele! Vamos, eu estou segurando ele, não tem perigo. Pode bater! Já!

E, como a menina ainda vacila:

— Se você não bater agora nele, eu é que bato em você!

A menina reúne toda a força que não sabe que tem, força que brota do ódio, do desamparo, do desejo de vingança, da rejeição,do ciúme, do instinto de sobrevivência, e parte pra cima do menino. Ele tenta chutá-la, mas a mãe imobiliza suas pernas, enquanto a menina bate, bate, bate, cospe, chuta, xinga, dá cabeçadas, bate, bate, bate, bate, cada vez mais forte, com uma fúria que nunca soube possuir. Está adorando. Sente-se triunfante, vingada, poderosa.

Bate até o menino chorar alto, que é também quando ela se cansa. A tia vai soltando o menino aos poucos. Surpreso, humilhado, doído, ele chora. A mãe abraça o filho com carinho e o beija, afagando-lhe os cabelos molhados de suor.

No dia seguinte, o menino ensaia nova surra. Mas, esperta e poderosa, a menina depressa lhe arranha o rosto. Ele recua.

Deste momento em diante, a menina e o menino tornam-se inseparáveis. Juntam forças, manhas e saberes. Não brigam. Aliam-se os dois contra o resto do mundo. Combatem e vencem todas as maldades. Juntos são rei e rainha, índia e cowboy, índio e índia, professora e aluno, desbravadores do velho oeste, alvos aterrorizados das injeções do Seu Petrônio da Farmácia, sol e lua, telespectadores, leitores e personagens de histórias em quadrinhos, cinéfilos, namorados, concha e água-viva, astronautas, vítimas de caxumba, sarampo e catapora, descobridores de fundos de mares e longínquas galáxias, fanáticos colecionadores de figurinhas, vendedores de distintivos do Partido Comunista e de papel alumínio retirado dos maços de cigarro, cúmplices de artimanhas, frequentadores de parques de diversão... Unidos contra o resto do mundo, são imbatíveis. Um sempre de olho no outro.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sophia de Mello Breyner, a força da poesia



Sophia de Melo Breyner Andresen (1919-2004) é considerada uma das maiores poetas portuguesas do século XX. Penso que é uma das maiores poetas de todos os tempos. Seu verso é claro, preciso, elegante, comovedor. No final de um poema dedicado a Sophia, escreveu Manuel Alegre:“Sua escrita é de nau e singradura / e há nela o mar o mapa a maravilha./ Sophia lê-se como quem procura / a ilha sempre mais ao sul.”

Nascida no Porto, de família aristocrática — por parte de pai, de origem dinamarquesa —, Sophia passou a infância e adolescência na cidade natal, na fabulosa Quinta do Campo Alegre (hoje simplesmente o Jardim Botânico do Porto), que pertencia à sua família. A infância e a natureza são dois temas preferenciais da poesia de Sophia. Outro tema central é o mar, presente em dezenas de poemas seus, como este

Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Já o poema a seguir recria de forma magistral um tema caro aos portugueses, o do mar ligado aos descobrimentos:

Descobrimento

Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado.
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios
O mar tomou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados


Em Lisboa, Sophia de Melo Breyner formou-se em Filologia Clássica (1939) — a herança clássica tornando-se essencial à sua percepção do mundo —, participou de movimentos literários, tornou-se amiga de poetas como Jorge de Sena e, ao lado deles, combateu a ditadura salazarista. Tinha coragem e um forte senso de justiça. Casou-se em 1946 com o advogado, jornalista e político Francisco Sousa Tavares, tendo cinco filhos, entre os quais o escritor Miguel Sousa Tavares.
Em 1974, Sophia apoiou a Revolução dos Cravos, que pôs fim ao salazarismo, e no ano seguinte foi eleita, pelo Partido Socialista, para a Assembléia Constituinte. Seu profundo senso de cidadania inspirou-lhe vida e obra. Não colocou sua poesia a serviço da ideologia, mas trouxe para os versos situações vividas no dia-a-dia da história do seu país. A dura situação do exílio, por exemplo, experimentada por tantos de seus amigos durante o salazarismo, a comovia:
Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades


Sophia sabia que, acima e além dos homens, das circunstâncias e das guerras, reinava o poder da poesia, único capaz de fazer reflorir a vida:

Poesia

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.


Sophia de Mello Breyner publicou numerosos livros de poesia a partir de 1945, entre eles Mar Novo (1958), Livro Sexto (1962), O Nome das Coisas (1977) e Ilhas (1989). Foi também contista, escrevendo ainda diversos livros para crianças. Recebeu prêmios importantes, entre eles, em 1999, o Prêmio Camões. Poucos foram tão grandes quanto ela:

Deus escreve direito por linhas tortas

Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol tua luz teu alimento.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails