sábado, 28 de fevereiro de 2009

Millôr Fernandes

















Para mim, é nosso maior intelectual vivo. Ninguém tem obra tão vasta, original, variada, erudita, crítica, brilhante e divertida como a dele, atualmente. Ninguém escreve e desenha com a mesma qualidade dele; ninguém cria textos e traduz com a excelência dele. Como é humorista, muitos, erradamente, não o levam a sério nem lhe prestam a devida atenção. E, como tem publicado grande parte de seus escritos e desenhos “aos pedaços”, isto é, em revistas, muitos perderam a noção da importância do conjunto da sua produção.

Millôr Fernandes é uma espécie de consciência crítica da nação. Ao longo de décadas, seus escritos, charges, livros, caricaturas, desenhos têm a marca inconfundível do seu olhar informado, experiente, irônico e muitas vezes cínico, que nos ensina: “Não é como você pensa, não: é assim que se passa isto; aquilo vai dar naquele beco sem saída; este líder é um bestalhão; aquele se esqueceu de que já morreu.” Millôr sempre foi uma voz independente, jamais se deixou atrelar a partidos, grupos, líderes. Livre pensar é só pensar: um de seus motes. Quando, numa atitude bem brasileira, nós nos mostramos doidos para sermos enganados — tipo me engana que eu gosto —, lá vem uma charge, uma frase, uma aquarela do Millôr para nos alertar, cruamente: “Você não pode se enganar, meu bem: por baixo deste manto, existe a podridão.” Ele nos põe todos, e ao país, a nu. Millôr Fernandes nos faz rir de nós mesmos, seu humor corrosivo destruindo qualquer farsa. E, de lambuja, ainda nos dá uma compreensão mais completa, mais funda, da existência.

Além da produção jornalística, Millôr escreveu diversas peças de teatro, poemas e livros, e fez também primorosas traduções, Shakespeare inclusive. Para conhecer um pouco da sua obra, clique no título deste post, que o transportará ao site dele (é verdade que, se você não for assinante do Uol, só vai ver um poquinho). Somente a título de magro aperitivo, eis algumas de suas pérolas, colhidas ao acaso em A Bíblia do Caos (L&PM, 2002):

“Deus fez o sol. O Demônio inventou o dinheiro, que brilha muito mais.”
“O problema de ficar na fossa é que lá só tem chato”.
“Só a imaginação destrói para a eternidade”.

“Até hoje, no Brasil, só houve uma reforma agrária ampla, verdadeira e eficiente — a das capitanias hereditárias. Para sempre hereditária.”

“Quem não sabe, acredita.”

“Todo cego moral se julga um guia de povos.”
“Meu ideal é que até a hiena pare para pensar um pouco antes de rir de mim.”

A biografia de Millôr Fernandes desafia teorias psicanalíticas e sociológicas. Nascido em 1923 no subúrbio do Méier, com um ano ficou órfão de pai, e com dez, de mãe. Ele e os três irmãos (entre eles, o jornalista Hélio Fernandes), foram separados e encaminhados para casas de parentes, sofrendo dificuldades emocionais e financeiras. Aos 17 anos, descobriu que seu nome não é Milton, como pensava, mas Millôr, devido a um erro do funcionário do cartório. E Millôr ficou para sempre, iniciando o que seria uma de suas marcas registradas: reverter a má sorte a seu favor.
Aos 14 anos, ingressou numa redação de jornal, onde passaria grande parte da vida, fazendo de tudo. Entrou para a revista O Cruzeiro, que logo se tornou a mais lida no Brasil. Aí, Millôr — com o pseudônimo “Vão Gogo” — criou O Pif-Paf, onde desenhava e escrevia já com o traço e o humor incomparáveis. Foi um dos fundadores de O Pasquim, o jornal de humor que reinventou o jornalismo brasileiro e, sob todo tipo de censura, nos ajudou a respirar e suportar os anos da ditadura. Millôr raramente dá entrevistas. E não é modesto: sabe do seu valor. Abaixo, um trecho da sua Autobiografia de mim mesmo à procura de mim próprio:

"E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras — reco-reco, tatibitate, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada. Quem é que sou eu? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre. A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.”
* Charges de Millôr deste site

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Eugénio de Andrade

O Desejo


O desejo, o aéreo e luminoso
e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era o céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta - o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.

(Eugénio de Andrade, O Outro nome da terra, 1988)

Três ou quatro sílabas

Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.

(Eugénio de Andrade, Véspera da Água, 1973)

Que fizeste das palavras

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

(Eugénio de Andrade, Matéria solar, 1980)

Eugénio de Andrade (1923-2005) é um dos maiores poetas do século XX, e um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos (não por acaso um dos meus preferidos!). Nascido em Póvoa de Atalaia com o nome de José Fontinhas Rato, mudou-se para Lisboa aos dez anos de idade, com a mãe, separada do pai. Em 1943 transferiu-se para Coimbra, onde conviveu com intelectuais como Miguel Torga e Eduardo Lourenço, voltando depois a Lisboa. Contudo, foi homem sedentário, de poucos deslocamentos, viajando através da literatura: instalado em 1950 na cidade do Porto – que considerava a sua cidade, e da qual foi cidadão honorário -, aí viveu cinquenta e cinco anos, até morrer. E, inspetor administrativo do Ministério da Saúde, exerceu a mesma função durante trinta e cinco anos, até aposentar-se, por haver sempre se recusado a prestar concursos para promoção. Fez sólidas amizades entre os escritores, mas, dedicado à literatura, não participou de vida literária nem social. Recebeu prêmios importantes (para os quais não se inscreveu), como o Camões (2001) e o Pen Clube (1984). Existe hoje em Portugal uma fundação dedicada ao escritor.

Eugénio de Andrade foi sobretudo poeta, autor de numerosos livros escritos ao longo do tempo, entre eles os aqui nomeados sob cada poema, e mais, entre outros, As Mãos e os Frutos, Mar de Setembro, Escrita da Terra, Limiar doa Pássaros, Memória Doutro Rio, Matéria Solar, Oficio da Paciência, O Sal da Língua, Os Lugares do Lume e Os Sulcos da Sede. Escreveu também (pouca) prosa, como À Sombra da Memória, além de dois livros para crianças. Foi tradutor, sendo ele próprio um dos escritores portugueses mais traduzidos. Sua obra necessita urgentemente de republicações, reedições, seleções e estudos no Brasil.
* Imagem daqui

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O livro da minha vida




[Este post integra a ótima blogagem coletiva proposta pela Vanessa em Fio de AriadneCor do texto, sobre o livro da sua vida — não necessariamente o mais bem escrito ou o melhor, mas O livro, aquele que fez toda a diferença pra você.]
Ainda me lembro perfeitamente do dia em que comecei a ler Cem Anos de Solidão, em 1967, há mais de quarenta anos (pronto, já entreguei minha idade: só Gabriel Garcia Marquez pra fazer isso com a gente!). O livro acabara de sair no Brasil, fazia um calor senegalês no Rio, eu voltava da praia. Vi de relance, na vitrine de uma livraria do caminho, essa capa aí da esquerda, não resisti, entrei e comprei o livro. Em casa, após o banho, me deitei de bruços no chão e comecei a ler. Nunca mais fui a mesma.
Hoje, passado tanto tempo — Gabriel Garcia Marquez é Prêmio Nobel de Literatura, o realismo mágico explodiu e foi exaustivamente praticado, estudado, sugado e cuspido —, hoje é difícil entender o impacto tremendo de Cem Anos de Solidão sobre alguém. Mas quando, desavisada, eu aportei em Macondo, nunca mais quis sair de lá. Macondo era a cara do mundo que eu conhecia e não sabia dizer, do que eu vivenciava porém não nomeava nem compreendia. Tudo ali me era familiar, mas, ao mesmo tempo, tudo me foi revelado pelo livro. Minha sensação — eu, maravilhada —, era a de alguém me pegando pela mão e me dizendo: isso aqui se nomeia assim, daqui em diante isto vai se chamar assim... Como se eu reconhecesse, pela primeira vez, o que é o Brasil e o restante da América Latina (que eu não conhecia ainda, mas intuía).
Aquela confusão eterna de Macondo, a sujeira, a beleza, a desordem, as sete gerações de Buendías de nomes repetidos e infinitos casamentos endogâmicos, as trinta e duas revoluções — revoluções que ninguém entendia, porém se repetiam e se repetiam e se repetiam, tumultuando para sempre o mundo —, aquela personagem Remédios, a mulher mais linda do mundo que ascendeu aos céus para nunca mais retornar, aquele Álvaro, o que tudo vendeu para entrar numa viagem de trem que nunca termina ( ainda está acontecendo), aquele Aureliano Buendía de muitíssimas mulheres e dezessete filhos porém incapaz de amar, aquela história do futuro dos Buendía encontrada num antigo pergaminho ... Aquilo era eu: pela primeira vez, totalmente identificada com o universo de um livro. Aquilo não era eu: era literatura, era a realidade transformada, transfigurada para outra dimensão.
* Imagens: à esquerda, capa da quinta edição, a mesma da primeira, em que li o livro; à direita, capa da edição comemorativa dos 40 anos de publicação de Cem Anos de Soldião, 2007.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sobre personagens e escritores


Alguns leitores do meu conto Desejos (como todos os dias), postado abaixo, sugeriram outros possíveis finais: quem sabe a Dolores não realizava suas fantasias? Ela poderia ter encontrado o marido em situação mais comprometedora... quem sabe o marido com o padre? Ela devia ter voltado à padaria (dois votos), e por aí foi.

Vou compartilhar com vocês algumas ideias e sentimentos que tive ao escrever o final desse conto. Aproveito, assim, para tocar num assunto que me interessa muito: as relações - confusas, tempestuosas, tipo ataque de nervos - entre personagens e autores. Vou explorar um pouco esse pântano, esse céu sempre incerto de ódios, paixões, incestos e amores.

Demorei para escrever o final de Desejos, e quando o fiz, escrevi esse que saiu publicado. No entanto, ele não me agradou. "Mas que coisa, então vou largar a Dolores assim, na confusão, sem nada, depois de fantasiar tanto?", eu pensava, frustrada. Não há nada em comum entre mim e a personagem Dolores, somos praticamente opostas. Nem sei como ou por que ela surgiu como meu personagem. Assim, eu, Janaína, não aceito para mim relações amorosas de dominação/submissão, como a da Dolores, e eu, Janaína, não tenho nada a ver com a vida interiorana da Dolores. Contudo, para escrever sobre a Dolores, principalmente para escrever da perspectiva dela, como no conto, eu tive de me aproximar da Dolores, conhecê-la, me por à disposição dela. Como um ator, acho, faz ao interpretar um personagem.

Nesse momento de interação personagem-escritor, caem os valores e julgamentos (não importa o que eu acho da Dolores, nem se concordo com ela, importa que eu transmita o que ela é). Nesse momento da criação, prevalece o amálgama, o abraço entre autor e personagem: o autor abre caminho para o personagem, torna-se seu "cavalo" (para usar a expressão do candomblé), o meio para sua criação expressar-se. Quanto maior, mais íntima essa interação, melhor o personagem, mais verdadeiro, humano e sedutor.

Bom, mas, criada a Dolores, eu não me sentia satisfeita com seu destino: "Ah, essa história não vai acabar assim", resolvi. E, exatamente como me sugeriram agora alguns leitores, escrevi um novo final, e, nele, mandei Dolores de volta à padaria: decepcionada com o marido, humilhada, ultrajada, ela decidiu resolver a parada com o padeiro, completando o que não tinha tido coragem antes de fazer. "Boa, Dolores, dá-lhe, isso mesmo", comemorei.

Mas... alguma coisa ainda me incomodava. "Ainda não está bom", pensei. "Tem alguma coisa neste conto que não está funcionando. Vou deixar o texto dormir mais um pouco."

Certo noite, sonhei com uma solução: escrever quatro finais, todos possíveis; o leitor escolheria qual quisesse, ou ficaria com os quatro. Assim fiz: o primeiro final era o que foi publicado; no segundo, Dolores voltava à padaria, disposta a transar com o padeiro; no terceiro, ela abandonou todas as inibições no casamento, levando o marido a desinibir-se também, e o conto termina com ela transando com o marido sujo de graxa, na garagem dele, ela só de camisetinha vermelha; finalmente, no último ... Não cheguei a escrever esse último - seria a fuga de Dolores, com o padeiro e o filho, para o Rio de Janeiro - porque continuava insatisfeita. "Isso não está funcionando. A idéia é boa, mas o texto está ruim. Não está verdadeiro." E lá foi o texto dormir mais uma vez no fundo do meu computador.

Tempos depois, ao reler tudo, concluí: "O primeiro final é o melhor. Esta é a verdadeira Dolores, é isso o que ela faria, isso foi o que ela fez: ao flagar o marido, ficou apavorada, confusa e dolorida, sentindo a vida toda revirada, mas sem ação. Pode ser até que, depois, ela fizesse alguma coisa, tomasse alguma atitude, mas eu não sei qual. Então, este conto acaba assim." E o postei.

Não sei se é o melhor final. Certamente não é o que eu, Janaína, gostaria que fosse. Mas foi o que senti literariamente mais verdadeiro, o mais fiel à personagem Dolores. Posso dizer que, após brigar por um tempo com a personagem, retornei à ela e à sua perspectiva, consegui de novo abrir passagem para sua vontade, tornei-me de novo a sua voz.

Final feliz, então, para esse imbroglio todo? Possa ser, como se diz na Bahia. Mas não tenho tanta certeza: afinal, quem me garante estar interpretando bem os desejos da personagem que criei? Quem me garante que, pensando falar por ela, na verdade falo apenas por/de mim?

O que vocês acham disso tudo?

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Desejos (como todos os dias)




— Pai, afasta de mim a tentação...

Dolores sussura mais uma vez a súplica, apressando o passo em frente à padaria. Não posso vê-lo de novo, não posso, não agüento...
Esmaga o dinheiro na mão, procurando fixar o pensamento nas compras do mercadinho: abóbora, maxixe, batata, banana da terra... Ainda bem que amanhã vou fazer o cozido, isso vai me ajudar a esquecer o corpo jovem, musculoso, brilhante de suor do... Droga — ele, de novo! Qualquer pensamento, até mesmo sobre o cozido, me arrasta de volta pro corpo deste padeiro!
Já se pegou pensando nele, no banho. Sob a água do chuveiro, sua mão imperceptivelmente deslizou barriga abaixo. Não fazia aquilo há tantos anos... Nem se lembrava mais como era bom! Quase desmaiou de prazer, pernas bambas, boca entreaberta dizendo palavrões no ouvido do deus louro. Encostou-se no espelho pra não cair. Fantasiou o corpo nu do padeiro ali grudadinho no seu, sexo com sexo, sexo no sexo. Lambeu cada pedaço dos músculos do peito dele, os pêlos louros encaracolando dentro da sua boca...
— Doloooores!
O grito do marido zuniu pela casa até bater-lhe no ouvido, assassinando a fantasia.
Todo mundo sabe Mário é um maridão. A rua inteira tem inveja dela. Até bate três vezes na madeira, quando alguém pronuncia o nome dele.
— Maridão que nem esse seu, Dolores, não existe. Põe as mãos pro céu, minha filha, tu tirou foi a sorte grande! – dona Almerinda, a vizinha, sempre lhe diz. Coitada dela, também, casada com o demônio do Alair, que some no breu da noite e só volta pra casa dia claro, sem um tostão no bolso, tropeçando nos pés de tanta pinga, olho boiando nas órbitas... A pobre da Almerinda é que tem de se virar sozinha, lavando roupa dia e noite pra sustentar os meninos.
Mário, não. Mário sempre ali ao seu lado, exemplo de marido, zeloso da casa e do Juninho. Nunca bebeu. Nunca se meteu com mulheres. Sempre a respeitou. Pega cedo na oficina, deixa o batente só quando o último freguês sai. Oficina pequena, de uma porta só, mas com freguesia maior até que a do turco da praça. Mário sem exigências. Come de um tudo, gosta de arroz e feijão e uma mistura, e, em dia de festa, dobradinha. Qualquer trapo serve: “Vou sujar de graxa, mesmo. Quero é que você e Juninho tenham as coisas, se vistam bem. Eu não preciso de nada."
O único luxo de Mário é sua antena parabólica. "Pra que isso?", estranham os vizinhos, examinando com desdém e inveja a majestosa antena a projetar-se da janela do quarto. "Amigo", Mário responde paciente, mão no ombro do enxerido, "Eu tenho insônia, quase não durmo. Um horror! Todas as noites passo horas e horas acordado, a mulher ferrada no sono, mas eu, não: corujão, olho arregalado. Pra me distrair, assisto filme a madrugada toda. Por isso assino essa tevê paga”, explica. “Meu único vício. Não gasto com mulheres, com bebida, cigarro, nada. Só essa assinatura de tevê. Chego do trabalho, e antes mesmo de tomar banho, já tranco a porta do quarto pra ninguém me aborrecer, caio na cama e... plic! Ligo a tevê”, diz.
Aniversário de dez anos de casamento amanhã, dez anos sem nenhuma briga séria. Mário tem só um defeito: é careta, conservador demais. Não deixa ela usar roupa curta, transparente nem apertada; não permite que fique “batendo perna na rua” com as amigas. Não aprova nem mesmo sua novela das oito! “Credo, Mário, que atraso! Isso também já é demais, sabia? O mundo mudou! Eu, hein!”
Verdade que ela também não é desses avanços todos. Criada na roça, família muito católica, quando casou veio direto pra esta pequena Santa Rosa... Lembra-se do dia em que umas primas distantes, adolescentes interessadas em esportes radicais, chegaram de supetão pra se hospedar na casa deles. Queriam percorrer as trilhas do Morro dos Macacos, tomar banho na Cachoeira Alta, essas coisas. Shortinhos mínimos, umbigos à mostra, pernas e bundas de fora, peitos soltos balançando sob as camisetas curtinhas, lá iam elas bater perna pela cidade. Eu, hein, meninas mais oferecidas!
— Dão mais que chuchu... – entreouviu o comentário do vizinho no ouvido de Mário.
Cara fechada, o marido imediatamente a trancou no quarto, exigindo que pusesse “aquelas duas putas” pra fora de casa. Deus do céu, como é que ia fazer isso com as primas, com que cara? Mário não quis saber: se elas não saíssem até o dia seguinte, ele mesmo as expulsaria, a pauladas. Quando finalmente tomou coragem e se aproximou das moças, para conversar, flagrou as duas às gargalhadas, uma delas dizendo:
— Essa prima é uma idiota! Não vê como ela se veste, feito viúva velha! O tempo todo na igreja ... Vive na Idade da Pedra!
— Pois hoje eu vou comer o marido dela lá na oficina, ha ha ha... Sempre quis traçar um mecânico cheio de graxa!
Isso facilitou a expulsão das duas, mas a deixou indignada. Feito uma idiota cozinhando e lavando pras primas, enquanto as duas se exibiam pelas ruas, e ainda por cima queriam lhe tomar o marido! Ah, essa não, era o que lhe faltava! Que fossem pro inferno! Benzeu-se. Mário tem toda razão. Sou da Idade da Pedra mesmo, gosto é de vida dentro de casa, cuidar de marido e filho. Não quero confusão pro meu lado.
Caminhando, relembra agora o dia do seu casamento. Dez anos atrás. Entra na igreja de braço dado com o pai, magrinha, magrinha — só depois ganhou este corpão —, vestido bem rodado pra disfarçar os ossos. Mário cumpriu todas as promessas que lhe fez naquela igreja: amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza... E ela agora, querendo retribuir a dedicação do marido com sonhos malucos de se esfregar nua no corpo do padeiro!
Enfia-se pela rua do mercadinho, suplicando:
— Pai, afasta de mim essa tentação...
Mas se já fizera de tudo pra esquecer esse homem que irrompeu em sua vida como uma flecha, sem pedir licença, sem perguntar se podia, se ela consentia, armado apenas com a força brutal dos seus músculos, do seu sexo! Ainda por cima atrevido, o filho da mãe! Gosta de agarrar seus dedos por baixo do embrulho do pão, piscar-lhe o olho, soprar beijos que se aninham entre seus seios, entre suaas pernas, na...
— Pai, afasta de mim...
Quando não tem mais ninguém na padaria, diz: “Gostosa”, “Tesuda”, “Bunda boa”, olhando direto nos olhos dela, a ponta da língua molhada devagarinho em torno da boca. Sem vergonha! Quantas vezes jurou nunca mais voltar à padaria? “Ando mais três quarteirões e resolvo pra sempre meu problema”, decide todo dia de manhã, mas à tardinha, ah, à tardinha, quando o cheiro do pão quente invade a sala e acende o desejo, à tardinha já não pensa no filho, em Mário, na casa, não pensa simplesmente, só quer voar, pássara faminta, ao encontro dele, do seu feixe de músculos, seu padeiro do pescoço largo, do braço másculo, do pau gr...
— Dois quilos de tomate, seu Antônio. Vou levar também esta banana da terra e a batata doce... Ah, e abóbora! Amanhã cedo Juninho vem buscar as folhas, viu? Separe as mais frescas.... Aqui está seu dinheiro. Não esqueça do nosso cozido amanhã à noite, seu Antônio, o senhor e dona Celeste. Tchau! Sim, dou seu abraço no Mário.
O sexo de Mário é calmo. Sempre foi, mesmo no começo do casamento. Não é ruim, é bom. Como Mário: confortável, seguro; doméstico. Gosto de arroz com feijão, uma mistura. No começo, ela sentia falta... do quê? Não sabia. Era um oco por dentro, uma gastura, por sua pele corriam comichões desordenados, remelexos, arrepios solteiros... Às vezes se enchia de coragem, conduzia a mão de Mário até o seu sexo, no auge do amor gritava palavras obscenas que não sabia onde aprendera, comprava à prestação camisolas de renda preta, dormia sem calcinha para provocá-lo, oferecia a bunda.... Mário: “Dolores, você é maluca?”, e tapava a sua boca, e cobria a sua bunda, e vestia-lhe a blusa, escondendo seu desejo. Trazia-a de volta para o sexo dele, carinhoso, tranqüilo: matrimonial. Estava certo aquilo? Perguntou às amigas, tentou falar com Mário. Ele desconversava, uma vez sussurou uma esquisitice, qualquer coisa como “Meu pau não cresce muito, mas eu compenso”.
Depois do nascimento de Juninho, sossegou. Ocupou-se do filho, passou a pensar pouco em sexo, a praticar menos ainda. “Você amadureceu, Dolores”, Mário disse, satisfeito. Concordou, orgulhosa. Isso até...
... o demônio do padeiro aparecer, acordando sonhos mortos! Despertando desejos loucos, reavivando delírios! O que fazer desse fogo que não me deixa dormir, e, se eu durmo, incendeia meus sonhos? Como aplacar esse terremoto que tira completamente minha pequena dose diária de felicidade? O padeiro tem a resposta, escrita no embrulho cheiroso do pão: “Espero você amanhã oito horas rua das Oliveiras 33 minha casa não tem ninguém só nós dois vem não vai se arrepender”.
Dez pras oito, já! Ajeita as compras do cozido na sacola. Escondida lá no fundo, a camisola preta. Não é longe, andando rápido chegará a tempo na rua das Oliveiras. Corpo alvoroçado, desejo na pele, ela inteira transformada em sexo, flor preta e vermelha a gritar pela rua sua fome e sua sede. Fantasia o corpo nu do padeiro de bruços na cama. Beija os pelos louros dele, que acompanham a linha da coluna, do pescoço até a curva da bunda, a bunda mais gostosa que já sentiu. Revira o padeiro em todas as posições, abre-lhe as pernas, fantasias de gozo e....
— Dona Dolores, que coincidência! Estava pensando justamente na senhora! Temos de organizar muitas coisas para a missa de domingo – sobressalto, a mão branca e fina puxa-a para dentro da igreja.
— Nossa, que susto, padre Felício! – mão sobre o coração disparado. — Não, agora não posso, tô atrasada, amanhã a gente conversa, eu....
— Amanhã não é o dia do seu cozido, dona Dolores? Então! Amanhã a senhora não vai ter tempo, e há coisas muito urgentes aqui...
— Mas, padre...
— Onde é que a senhora vai? – pergunta brusca, olho no olho.
— Eu, eu.... – olho abaixado.
— Pois então! Não se pode recusar o chamado de Deus – com firmeza o padre a arrasta com para a sacristia.
Quando terminam a conversa, às nove e cinco da noite, sente-se outra mulher. Foi Deus quem botou padre Felício no meu caminho! Foi Deus, pra me impedir de fazer loucura. Respira aliviada. Quase fiz a maior besteira da minha vida, ia me arrepender pra sempre! Ajoelha-se em frente ao altar, reza dez ave-marias e dez padres-nossos, em agradecimento ao padre Felício e ao Divino Espírito Santo.
Vira na direção oposta à que veio. Acho que Mário vai gostar de me ver, assim, de surpresa. Inventei tanta história, pra poder sair hoje! Juninho tá passando a noite na casa da comadre Rosa, então quem sabe nós dois, eu e Mário... ri sozinha. Sou doida, mesmo!
Entra na cozinha. Pelo reflexo da televisão no corredor, sabe que Mário já chegou. Vou dar um beijinho nele, lá no quarto. Pode ser que a comemoração dos nossos dez anos comece agora mesmo, hi, hi ... Segura o cordão de prata, escondido no fundo da caixa de costura. Olha com ternura o pequeno embrulho, presente de aniversário de casamento pro marido, as dez prestações todas pagas, dinheiro economizado das compras, um pouquinho a cada dia, pra ele não perceber. Leva o pacote até o quarto. Vai bater — Mário sempre se tranca lá dentro, com sua tevê —, mas percebe a porta entreaberta. Ele achava que não haveria ninguém em casa...
Empurra a porta. Descobre Mário masturbando-se diante de um filme pornô, tão concentrado que nem a enxerga. Estaca à porta, pernas trêmulas. Virgem Maria, o que é isso? Na tevê duas mulheres transam, uma lambendo a outra, pernas abertas. Seus olhos pasmos desviam-se da tevê para Mário, nu na cama. O sexo em riste dele exibe um desejo imenso, intenso, urgente, insuspeito, um desejo que ela jamais imaginara existir, nele ou nela, nem mesmo nas suas fantasias mais loucas sobre o padeiro nu, doido desejo descontrolado de Mário, desejo de homem que vara o mundo e explode em gozo, contaminando para sempre o lençol, a cama, a parede, o ar, as pernas, o sexo, a barriga, o coração, a vida, ah! a vida dela para sempre revirada, revolta, às avessas, ai, a vida dela...
("Desejos", de Janaína Amado - regras para reprodução: Creative Commons)

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