sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Diálogos (im)possíveis

(Foto: Quilombo onde Dandara nasceu, na Serra da Barriga, vendo-se a árvore sagrada de Onan)

[Os jovens Pedro Lobisomem (P) e Dandara (D) se amam, mas estão há quilômetros de distância um do outro. Uma co­ruja registra o que Pe­dro Lo­bi­so­mem pen­sa, e uma cri­sá­li­da, o que Dan­da­ra ima­gi­na. Re­sul­ta desse imbroglio todo este diá­lo­go estranho, frag­mentado, aqui fiel­men­te re­gis­tra­do:]

P - Já bati tanta perna por esse mundão de Deus, co­nhe­ci tanta mu­lher! Nenhuma, Dandara, como você. Será, amor, que pen­sa em mim?
D - Eufrásia gorda diz que eu não conheço o mundo. Ela tá cer­ta, nun­ca saí daqui...
P - Eu também. Sabe como é o meu amor?
D - Tenho vontade de saber. Como é, meu bem, o mar? Eu nunca vi!
P - Tão grande! Tem dias em que penso: o meu amor é maior que as estrelas...
D - Maior do que a lua?
P - Maior!
D - Maior do que o sol?
P - Ih, maior!
D - Maior do que o céu?
P - Muito maior!
D - Maior do que Oxum?
P - !!
D - Mas o mar não pode ser maior que Iemanjá! No mar tem peixe, tem barco, tem onda...
P - ...nosso amor tem horizonte, gaivota, cotovia...
P - Tem dias, Dandara, em que acordo tris­te, pes­si­mis­ta, pen­san­do: essa nossa separação tem gos­to de sal, ela pode não ter fim. Eu que­ria tan­to, Danda­ra, conhecer o seu quilombo!
D - Pois meu pai veio da África, ele ainda se lembra...
P - Lembra a África?
D - .. lembra que o mar tem gosto de sal e não tem fim.
D - Às vezes, Pedro, eu penso: será o seu amor por mim como é o mar, sem fim?
P - Em Iagos costumam comparar o quilombo ao lobisomem. Di­zem que os dois não se acabam. Nunca morrem, não têm fim.
D - Será o lobisomem que nem o meu amor: sem fim?
P - Que nem o meu amor!

[Do meu romance Dandara. S.Paulo, Ed. Maltese, 1995. Regras de reprodução do texto acima: Creative Commons]

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Assim é, se lhe parece

Confesso: foi com vergonha e hesitação que escrevi sobre O que será que será. “Todo o mundo, menos eu, deve saber a resposta às perguntas da música”, pensei. Assim mesmo, arrisquei. Quase caí pra trás quando percebi que, como eu, muitos leitores também não tinham uma resposta, ou tinham apenas sugestões.
A minha sugestão é a de que a letra pode se referir ao amor, à liberdade (pelas razões que Lord e Lucy tão bem explicaram nos comentários) e, também, à... mentira. Afinal, como o amor e a liberdade, a mentira também não tem censura, vergonha, governo... e, como eles, controla também o mundo.
Porém, o que realmente me fascinou no assunto foi perceber: podemos gostar da letra de uma música (ou de uma poesia, uma pintura...) sem que saibamos seu significado preciso. Talvez por conter sempre inúmeras possibilidades, ou por nos alcançar primeiro o coração, a arte tem o poder de nos arrebatar antes mesmo de lhe atribuirmos qualquer significado específico (podemos gostar de uma música, poema, pintura etc. mesmo quando não sabemos, ou não nos perguntamos, o que significam).
E quando atribuímos significado a alguma forma de arte, trata-se de uma interpretação nossa, como leitores, ouvintes, espectadores... Que pode, e geralmente é, diferente da do artista criador da obra, sem que isso signifique que a nossa seja errada. Cada obra de arte teria, assim, tantos significados quantos lhe atribuem os seus admiradores. Assim é, se lhe parece: título de peça teatral de um de meus autores preferidos, Luigi Pirandello.
(Talvez eu tenha tratado de tema muito semelhante, com mais leveza, aqui)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O que será?

[Este maravilhosa letra de Chico, originalmente composta para o filme Dona Flor e seus dois maridos, é um poema, independente da música do Milton. Sempre me pergunto qual a resposta para as muitas perguntas que faz. Encontro três respostas diferentes. E você, o que acha? O que será, que será?]

(Foto de Luis Augusto Jungmann Andrade)


O que será que será
Que andam suspirando
Pelas alcovas?
Que andam sussurrando
Em versos e trovas?
Que andam combinando
No breu das tocas?
Que anda nas cabeças?
Anda nas bocas?
Que andam acendendo
Velas nos becos?
Estão falando alto
Pelos botecos
E gritam nos mercados
Que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza
Nem nunca terá!
O que não tem concerto
Nem nunca terá!
O que não tem tamanho...

O que será? Que Será?
Que vive nas idéias
Desses amantes
Que cantam os poetas
Mais delirantes
Que juram os profetas
Embriagados
Está na romaria
Dos mutilados
Está nas fantasias
Dos infelizes
Está no dia a dia
Das meretrizes
No plano dos bandidos
Dos desvalidos
Em todos os sentidos
Será, que será?
O que não tem decência
Nem nunca terá!
O que não tem censura
Nem nunca terá!
O que não faz sentido...

O que será? Que será?
Que todos os avisos
Não vão evitar
Porque todos os risos
Vão desafiar
Porque todos os sinos
Irão repicar
Porque todos os hinos
Irão consagrar
E todos os meninos
Vão desembestar
E todos os destinos
Irão se encontrar
E mesmo padre eterno
Que nunca foi lá
Olhando aquele inferno
Vai abençoar!
O que não tem governo
Nem nunca terá!
O que não tem vergonha
Nem nunca terá!
O que não tem juízo...(2x)

sábado, 20 de setembro de 2008

Hilda Hilst

(A fotomontagem de Hilda é deste site)

[Vou começar a postar alguns escritores favoritos com Hilda Hilst (1930-2004). Hilda nunca poupou a si mesma nem a seus leitores de coisa alguma. Jamais fez concessões. Mergulhada na lucidez do desvario, expôs com impressionante coragem-- e linguagem ousada, única, que mistura prosa com poemas --, cada uma das suas e das nossas feridas, feiúras, secreções, desejos. Está tudo lá, na obra dela. Nem sempre consigo ler Hilda, às vezes não agüento sua crueza ou dificuldade. Mas retorno sempre a ela: sua literatura me explica.]


Se sou um galo
coma-me inteiro.
coma primeiro
meus pés
pois faiscaram
raspando terra e cascalho.
Coma-me
nero
torrando os bicos.
Ponha minhas asas
na esteira lisa
do teu conflito.
Deita-me despedaçcado
ao teu lado.
Coxas austeras
Pra tua goela.

___________________________________

Hostilizo meus ocos.
Desabo-os.
Sou um ogro.
Um corvo
Esbatido de socos.
Posso ser louco:
vivo dos sonhos
de um lobo.

____________________________________
Minha virilha, meu bolso.
Quem és? Pergunto
À planície de pêlos que se move.
Sou iracúndia sou gozo
Sou ligadura rijeza
Sou eu
Entre o verme pastoso
E a rutilante estrela que há em ti.

(Hilda Hilst, Estar Sendo.Ter Sido. S.Paulo; Nankin Editorial, 1992)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Vincent

Hoje tem um poeminha aqui.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Intruso

Quando eu me desespero de chorar, ela chega.

O meu país do leite nasce no bico do seio dela. Corredeiras de leite deslizam suavemente, sem parar, e me envolvem, me abraçam, me acalentam, me afagam, me dão as boas vindas ao mundo. Às vezes mergulho, enfiando a cabeça aqui, emergindo lá adiante, em leite banhado. Felicidade solar. Eu me entrego nu às correntezas que me entram pela boca, perninhas pra cima, brincando com os pés soltos no ar, sorridente.
Os seios dela me nutrem, me limpam, amparam, ungem. Como todo recém-nascido, sou cego. Minha boca, nariz, ouvidos, minhas duas mãozinhas e meu coração desprotegido vão aos poucos desvendando universos. Tateio nervuras, sinto calores, ouço ploc! bin chup chup inch cloc. Cheiro talco, alecrim - cheiros dela ou de mim? Descubro carocinhos de arrepio, me inebrio nos seus vales, invado temperaturas, as gotinhas de suor que brotam da pele dela umedecem também a minha pele, luz, a textura e o sabor inconfundíveis do leite e aquelas duas magníficas alturas que terminam em picos dentro da minha boca. O mundo dos seios dela. O mundo nos seios dela.

De uns meses para cá, sinto que nem sempre ela vem. Mesmo quando eu me desespero de chorar, às vezes ela não vem.
Em lugar dela, vem a vó. Eu não quero a vó, eu só quero ela, o meu país do leite nasce dos seios dela. A vó não tem seios, já procurei. Carrega só dois sacos murchos, ásperos: vazios.
A vó me dá sopa. Salgada e verde esta sopa, cheia de pedacinhos.
— Come, menino. O sal do mundo.
Antes eu cuspia tudo, puuuuf! na cara da vó. Agora como a sopa. Aprendi que há coisas piores, como fralda molhada e a falta danada que ela me faz.

Quando ela chega, renasço. Ultimamente, só aparece à noite. Chega tão tarde que eu, cabeça espremida contra as grades do berço, estou dormindo. Ah! mas acordo assim que escuto os passos macios, o perfume de alecrim enche o quarto... brota luz do corpo dela, ilumina o escuro: minha vida transformada em alegria. Ela traz os cabelos molhados, sinto quando se inclina sobre mim no berço, as pontas roçando o meu narizinho. Brinca com as minhas mãos, faz cócegas na minha barriga, me pega no colo, me carrega até a cadeira de balanço, me aconchega, amolecido, junto a ela. Desata a blusa, e eu mamo. Conectado a estrelas.
Meu país do leite é bom, gostoso, cheiroso, povoado de alegres burburinhos. Dali sou transportado de volta até o útero, minha primeira, mais secreta morada. Retorno a um tempo arcaico, atemporal, um tempo líquido quando eu ainda não sabia quem era eu nem quem era ela, o que era dela e o que era meu, nós dois um só, ela-eu. Existiam apenas vácuo, água, calor e aquele silêncio atento, raramente rompido por barulhinhos da barriga dela - da barriga dela, ou da minha?
Esse tempo assim antigo existiu antes da extraordinária viagem que um dia realizei por dentro do corpo dela. Viagem desatinada por seus rios, regatos, ribeirões, riachos; por seus igarapés secretos, canais, furos, calhetas; por suas cataratas, corredeiras, cachoeiras, seus flúmens de vapor e névoa que me transportaram até o mundo cá fora. O mundo! chicotes de luz, ferro frio, espinho e dor da palmada: ruptura.

Ela tem andado doente. Deitada, dor de cabeça, vomita.
— "Mamãe dodói", a vó me fala.
Se ela está dodói eu também estou, se ela está doente o meu corpinho também dói, se ela está doente eu... choro. De pena dela, e da falta que ela me faz.
Terror de perdê-la. À noite, sozinho no quarto escuro, sonho com um monstro imenso de olhos verdes e dentes afiados que me devora. Eu, sozinho no mundo.

— Mamãe dodói?, pergunto a ela.
Ainda de cama, ela sorri pra mim. Réstias de cor, luz do sol, areia branca, amor! Quanta alegria! Ela me abraça, me põe em cima da barriga, rola comigo na cama, desmancha os meus cabelinhos. Festa no céu, balacobaco, azul do mar - ela voltou, voltou! Dentro do abraço dela eu me desvaneço, esqueço aqueles dias de olhos fundos, choro, doença, vômitos. Quero abrir a blusa dela, busco com sofreguidão seus seios, desejo de volta o meu país do leite, ah! infinitas corredeiras, seiva da minha vida.
Com um gesto firme, ela me afasta. Me oferece não o bico do seio, mas um bico falso, atado a um vidro ou plástico. Com um safanão, atiro longe a mamadeira. Fujo rápido dali. Desnorteado. Desprezado. Traído. Quero ficar longe dela.

Nos últimos tempos, ela apareceu com um cheiro novo, esquisito, na boca. Seu rosto cresceu. Os cabelos perderam a forma. As pernas engrossaram. Sua linda boca parece inchada.
— Mamãe dodói?, vivo perguntando a ela.
Horror de perdê-la. Já basta ter perdido os seios dela! Já basta ser obrigado a mamar no bico falso, aquele que não tem o gosto dela, o que jamais me transportará até o país do leite.
Eu não posso perder o que me resta dela.
— Mamãe dodói?, vivo lhe perguntando.
Ela me dá um abraço tão apertado que eu quase me acalmo. Mas meu corpo grita alerta. Sento na cama, de um pulo. Aperto a barriga dela:
— Grande!
Ela me beija, me afaga:
— Aqui dentro tem um neném, um irmãozinho pra você.
Grita o galo, desandam as rodas do mundo. Tesouras. Lanças. O que foi feito do mundo? Buracos no peito. Arranhões. Gelo, confusão. Alfinetes. Rochedos altos. Estridência. Ossos. Dor. Corpo coberto de chagas, que invadem a alma.
Eu não respiro. Vou morrer.
Mijo nas calças, na cama, na barriga dela. Mijo no mundo.


Desço rápido do berço. Ultimamente aprendi a dar esse impulso com a bunda – bem forte, se não, caio pra trás: passo a perna sobre a grade, e escorrego pelo lado de fora, mãos firmes, pra não me esborrachar no chão. Corro até o quarto dela. Já conheço de cor esse caminho colorido da alegria.
A cama onde ela dorme sob o sol das manhãs de domingo é quente, macia e branca. Sou livre ali, passarinho. Nossas brincadeiras de domingo não têm hora pra terminar. Eu não preciso tomar sopa verde nem tenho de sugar bico falso. Fico quietinho ali junto dela, chupando o dedo. Deslizo devagar a minha outra mão por seus cabelos, rosto, pescoço, colo, seios, o corpo dela esquentando o meu.
Quando ela abre o olho, a gente rola na cama pra lá e pra cá, pra cá e pra lá, a gente pula na cama, a gente canta, e como eu sempre canto errado a gente ri, a gente ri cada vez mais alto. Ela joga a cabeça pra trás e abre a boca. Fica bonita assim, sob o sol das manhãs de domingo.

É verdade que Ele também está lá. Não posso vê-lo, mas sinto sua presença. Ele vigia a gente o tempo inteiro. É como meu monstro de olhos verdes e dentes afiados, que também não vejo, mas dorme no berço ao meu lado. Quando deito a cabeça na barriga dela, quase posso sentir a respiração desse ser invisível, que eu odeio.
Ele mora ... lá! Na minha mais secreta morada, naquele lugar especial, único no mundo, onde eu e ela éramos um, o tempo decorria líquido e o espaço, profundamente terno, onde o silêncio significava amor. Ele habita o lugar de onde eu vim, a minha origem! que, portanto, é minha, nunca dele. Não faço a menor idéia de como esse clandestino invadiu e ocupou o meu lugar no mundo.
Mordo, chuto, soco a barriga dela. Quero que Ele morra.

Hoje a vó resolveu enfeitar a casa.
— Vó, festa?
— Não, não – é que ela logo vai chegar aqui com seu irmãozinho. Vamos deixar a casa bem bonita pra eles!
Não entendo a vó. Se ela sempre chega com Ele, pois Ele mora lá dentro da barriga dela, no meu lugar! Onde ela vai, carrega Ele junto.
Eu não quero casa bonita. Não quero enfeite. Não quero irmãozinho. Odeio irmãozinho. Não quero a vó. Eu só quero ela. De volta pra mim, a blusa desatada, me oferecendo os seios. Eu quero o meu país do leite!

Não acredito! Ela chega em casa, carregando... o quê?
Abaixa-se junto a mim:
— Olhe! O seu irmãozinho! Nasceu!
Mas é... Ele! Pulou de dentro da barriga pra junto dos seios dela!
Não, eu não quero. Joga Ele pra lá. Se livra dele. Eu detesto Ele.
__ E então, o que nós vamos fazer com seu irmãozinho, agora?
Estico o beiço:
— Joga da janela!
­— Credo em cruz! ­ – grita a vó, apavorada. ­— Décimo oitavo andar!
— Joga, joga!

Já experimentei tudo o que podia. Chorei, mijei, caguei, golfei, engasguei, acordei no meio da noite. Fiz tudo o que Ele sabe fazer. Nada adianta. Ralham comigo. Ele pode mamar nos seios dela – eu, não. Ele visita sempre que deseja a minha terra, o meu país do leite, de onde fui miseravelmente expulso e para onde nunca mais poderei retornar.
Já fiz gracinhas, cantei a música dela, dancei a dança da vó. Ninguém mais ri. Ninguém nem me olha.
Desço rápido do berço, dando impulso com a bunda. Corro mais uma vez até o quarto dela, meu antigo caminho colorido da alegria. A porta agora está sempre trancada pra mim. Espinhos. Não posso entrar. Choro, esmurro, arranho, dou pontapé, até, exausto, me encostar na porta e deslizar para o chão: encolhido, impotente. Do lado de fora.

Desta vez a porta do quarto dela está... aberta! Empurro. Meto o rosto. Entro.
Faz escuro, aqui dentro. Silêncio.
Aos poucos, meus olhos vão se acostumando à escuridão. Mas ela não está aqui. Onde ela está?
Subo na cama. Encontro... Ele! O Outro. O Intruso. O Clandestino da minha origem. O Usurpador de seios. O Ladrão do meu país do leite!
Observo-o com atenção. Ele é muito... pequeno! Magro. Fraco. Fininho. Não tem cabelo. Nem dente. Horroroso. Não sabe andar. Não sabe falar. Bobo.
Aperto a careca dele. Ele chora. Aperto de novo. Chora mais alto. Que bom!
Só sabe chorar, Ele. Bobão! Odeio Ele.
De repente, os passos apressados dela no corredor.

Desço correndo da cama, com Ele. Alcanço a janela um segundo antes de ela entrar no quarto.

("Intruso", de Janaína Amado. Regras para uso: Creative Commons.)

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Música e poesia


[Nem todas as boas letras de música são bons poemas. Algumas, que a gente canta a plenos pulmões, adorando, não funcionam como versos sozinhos -- por exemplo "João Valentão", de Caymmi --, o que não lhes diminui em nada a qualidade como letras. Outras letras de música, uma minoria, resultam em poesia magnífica. Aqui uma de minhas preferidas, poema de primeira qualidade e, ainda por cima, um manifesto sobre o nosso idioma. Letra de música + poesia + manifesto, tudo funcionando muito bem, é truque só pra mestre, é ou não é?].

Língua

Caetano Veloso
Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixa os portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala, Mangueira!
Flor do Lácio, Sambódromo
Lusamérica, latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?
[Para mais letras de Caetano, clique aqui]

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Meninas


[Abro o novo blog com este texto, talvez o mais pessoal de minha ficção. Escrevi-o há algum tempo já, mas sempre gosto de voltar a ele.]

Sempre esta algazarra, à noite. Cada uma querendo dormir numa hora diferente, como é possível alcançar ordem no alvoroço? A menor é a mais quieta, tem sono cedo. Fecha os olhos – dedo na boca, fraldinha no rosto – e nada mais a acorda, nem o vozerio das outras. Mariazinha simplesmente embarca para outro mundo, e pronto, fica lá até de manhã. Em compensação é a primeira a acordar, em geral em horas impróprias, me pega fazendo amor, essas coisas. Tenho carinho especial por ela desde que a encontrei, espremida no canto de uma sala deserta, cabeça baixa, pernas encolhidas, ouvidos tapados pelas mãozinhas. Tão pequena e já não consegue suportar os barulhos do mundo, me lembro de ter pensado. Ainda demorei um pouco a chegar junto dela, não sei se por medo de magoá-la mais ou autodefesa egoísta, de não saber se suportaria conviver com ela dali em diante, vida afora com aquela criança carente pendurada em mim. Mas acabei me movendo, completei o passo congelado – ao me abaixar, vislumbrei pela janela imprecisos prados tristes e um cavalo sem rumo -, cheguei perto dela...

Quietas, meninas, como é que eu me concentro, com um barulho desses? Assim não é possível!

Mariazinha se assombrou com a minha presença ao seu lado, decerto não esperava ninguém, sozinha no mundo se sentia. Olhos tão assustados, o que será que lhe fizeram, minha menina?, pensei. E estendi os braços para ela. Me olhou desconfiada, seu pequeno corpo arfava atento, calculando perigos e benefícios. Logo me estendeu os bracinhos. Então nós duas nos abraçamos, nos abraçamos tanto, mas tanto que nos perdemos para sempre uma na outra. Acho que você estava aqui me esperando há muito tempo, sorri, ainda sentindo seu cheiro agreste. Puxa vida, que bom que você chegou! acho que a ouvi dizer, mas ela não falava, já tinha idade mas ainda não aprendera, talvez ninguém conversasse com ela. Libertei Mariazinha – nos libertamos, soprou no meu ouvido –, daquele fim de mundo saímos abraçadas, nós duas e um arlequim de losangos coloridos surgido não sei de onde, que dava saltos, juntava no ar as duas sapatilhas, em torno de nós fazia graça com a sua boca pintada de vermelho.

_ Socorro, socorro! Ela está me matando!

Mal consigo chegar a tempo de separar as duas e, por um triz, evitar o assassinato. Alice quase furou os olhos de Mariazinha, qualquer dia desses ainda vai matá-la. Isso me angustia, não sei o que fazer para impedir. Quero me livrar de Alice, nem sei quantas vezes a mandei embora. Não suporto você!, estou lhe dizendo agora na crueza da minha linguagem, mas ela me desafia, voz esganiçada de adolescente, peito estufado, fingindo jeito de galinha posta, adulta. Antes mesmo dela falar, grito na sua cara: Nunca chamei você aqui, nunca quis você. Estou possessa: Você invadiu minha casa! Arrombou minha vida, ainda por cima quer matar Mariazinha. Assassina! Olhos de lince, no ar barulho de espadas, a voz dela sai mansa, estalando de ironia: Não adianta espernear, querida. Você sabe: simplesmente, não consegue viver sem mim.
O pior é que é verdade. Meus Fora!, meus Cachorra!, até meus Assassina! se esvaem diante da evidência, fio de faca: não posso viver sem ela, parte de mim que me parte.

Alice não é sempre assim, penso, para desculpá-la ou me consolar. O ambiente do quarto fica menos tenso, minha respiração aos poucos volta ao normal. Me lembro de quando a conheci. Adolescente sozinha na varanda, perdida na poltrona grande demais para ela, cabeça baixa. Não me viu. Observei o encaracolado dos cabelos, o risco da boca, os aros agressivos dos óculos. Braços pontiagudos, dois seios apontando, a elegância precoce da postura. Sensível e orgulhosa como haste de lírio, concluí. Vai me ferir, e muito.
Acho que Alice ouviu meu pensamento, porque levantou rápido a cabeça. Tonta com a agressividade do seu olhar, permaneci contudo de pé, agarrada à idéia de que, se eu havia chegado até ali, nós duas precisávamos nos conhecer. Bem-aventurados os que procuram, pensei na hora, assim mesmo, tipo citação bíblica. Mas o ar secou, e nos descobrimos no mais inóspito, isolado e cruel deserto do mundo. Apavorada, Alice correu até mim. Nosso abraço aconteceu em plena tempestade de areia. Areias que te sufocam, areias que me sufocam. Em meus braços o corpo aterrorizado de Alice se aninhou, abandonou ângulos, estiletes, lanças, escudos cuidadosamente justapostos às feridas. Em meus braços, Alice, a quase menina, esqueceu-se por um instante da luta e do sofrimento, relegou a guerreira. Virou essência. Este desamparo... Ao longe espelhos d´ água, silhuetas de palmeiras. Juntas sairemos daqui. Ainda estamos tentando.

Elas ficam assim assanhadas pulando no meu quarto, adoram, travesseiros voando pra todo lado, bagunça indomável. Muitas vezes me canso, como é possível alguém levar uma vida normal – trabalhar, acordar, escovar os dentes, essas coisas que todo mortal tem de fazer todo dia –, e ainda cuidar deste bando de meninas enlouquecidas?
Aquela gorduchinha ali de cara malandra, preparando-se para atirar em mim - na minha cara! – a almofada laranja, é Al. Encontrei-a por acaso. Não existem acasos, Maria Alice, meu bem, escuto sua voz alegre fazendo cócegas no meu ouvido. Com ou sem acaso, ao virar a esquina dei de cara com ela, um dia. Me olhou dentro dos olhos, olhos bons os dela, olhos que não roubam —oferecem, compartilham. Aconchego, gosto de broa, de mar. Brincadeiras de menina, giroflê, giroflá! – cantarolou no meu ouvido. Seu canto recuperou no tempo meu jogo de amarelinha. Na mesma hora me transportou para um fogão a lenha, numa cozinha de paredes quentes, empretecidas da fumaça do fogão. Junto ao fogo, a mãe, a vó, eu – e uma paz! Fogo antigo a arder. Se até agora não se apagou, ele não mais se apagará, giroflê, giroflá, Al cantou.
Os sussuros de Al até hoje me conduzem mundo afora, rumo a tempos ancestrais. Giroflê, giroflá, o que foi que viste lá?, ela gosta de me perguntar após cada viagem, maior contentamento. Com Al desvendo territórios ocultos, paragens de mim que desconheço e receio, mas por onde ela me guia confiante, minha mão trêmula depositada sobre sua mãozinha segura.

Agora, chega! Cê-agá-é-gê-a, chega! Por hoje acabou, todas pra cama, já!

Grito em meio a uma revoada de penas, enquanto puxo a perna de Mali, esta distraída que vive tentando voejar pela janela, ao mesmo tempo em que afasto o prato de doce de leite da frente de Laíce, antes da menina insaciável estourar de tanta avidez. Graças a Deus elas entendem quando estou falando realmente a sério, concluo, retirando a colcha da cama. Não faço a menor idéia de como descobrem meu limite, talvez pelo timbre da minha voz, o lampejo do meu olho, meu cheiro, sei lá, os bichos também sentem essas coisas. O importante é que se acalmaram. É a minha oportunidade de colocá-las na cama, agora ou nunca. Já são duas da madrugada, amanhã cedo elas têm escola, e eu, trabalho duro. Basta de farra.
Faço xixi, escovo os dentes, visto a camisola curta, tudo rápido. Afasto o lençol, me deito. Recostada no travesseiro, dou palmadinhas no colchão:

_ Vamos lá, meninas, todas se deitando aqui comigo, e em silêncio.

Sobem na cama, em desordem. Apago a luz do abajur. Ainda se agitam, mas agora é bagunça leve, uma ou outra risadinha.
Pelo quarto dançam sombras. O sono pesa em meus olhos. João Pestana jogou o pozinho mágico em você, ainda escuto a voz de Mariazinha, antes de fechar os olhos. Acontece então o único, breve instante em que me sinto completamente sozinha, o do salto arriscado para o desconhecido, quando já deixei o quarto mas ainda não cheguei a parte alguma, solitário instante da vigília. Em seguida, durmo.
Todas as minhas meninas, claro, dormem junto comigo.
("Meninas", de Janaína Amado - regras para uso: Creative Commons)

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