segunda-feira, 29 de junho de 2009

Precipício



"Desde o dia em que sua mãe se cansara de gritar no quartinho dos fundos, onde o marido a trancafiava nas madrugadas antes de sair para a roça, desde o dia em que a linda e louca mãe se libertara das grades e ganhara a estrada velha da serra, com metade da cidade gritando atrás — em vão, porque ninguém jamais conseguiu colocar de novo os olhos sobre ela, como um feixe de luz desapareceu para sempre na mata —, desde esse dia, chuvosa madrugada de agosto, o abismo apareceu ao lado da menina Dora. Não sabia se fundo ou o quê, composto de quais matérias, se rochas, dunas, fezes, limbo, fogo, lama, se tudo isso e mais alguma coisa, entumescido de folhas, de bolhas, cavalos marinhos alados, se denso ou rarefeito em mariposas, se gema, sal, luz tardia do universo ou mistérios do mar, vale ou despenhadeiro, sem porquês nem comos, eiras ou beiras, sem nada, nada Dora sabia sobre ele. Abismo apenas, colossal buraco colado ao lado esquerdo do corpo. Bastava uma olhadela a qualquer hora, dia ou noite, para constatar que sim, ele continuava ali, atento, vigilante – um passo em falso, um único passo em falso e a engoliria para sempre."

[Assim começa meu conto “Píncaros precipícios”, parte da obra coletiva Dezamores (S.Paulo, Ed. Escrituras/Sesc SP, 2003). Como minha personagem Dora, há dias em que pressinto um abismo colossal bem aqui ao meu lado. Não sei se me equilibro em suas bordas ou se me atiro dentro dele. Terror e fascinação ao mesmo tempo. Afinal, o que ele significa? O que haverá lá dentro? Liberdade? Dor? Literatura? Autodestruição? Criatividade? Liberdade e dor? Não sei. ]
*Imagem daqui.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Batizado diferente

Meus pais eram ateus e comunistas. Não quiseram, portanto, me batizar.
Meus avós maternos eram profundamente católicos. Se havia alguma coisa com que não podiam concordar era sua neta permanecer pagã.
Numa bela manhã em que, bebê de três meses, fui deixada na casa dos avós, eles não tiveram dúvida: comigo no colo, partiram imediatamente para a igreja de Nazareth, próxima ao local onde moravam. Os dois eram muito conhecidos naquela igreja, frequentavam-na desde que haviam se mudado de Cruz das Almas para Salvador. Não haveria problema algum em ali batizarem a neta, da qual seriam inclusive padrinhos.

Mas as coisas não se passaram exatamente como previam meus avós.
Após receber muito bem o casal, prontificando-se a fazer imediatamente o batizado, o padre começou a anotar os dados:
— Nome da menina?
— Janaína.
— Como? – o padre chegou a dar um pulo para trás, horrorizado. Minha avó repetiu o nome.
— Janaína? Janaína não é um dos nomes de Yemanjá? Virgem Maria, isso é nome de candomblé! Fez o sinal da cruz e anunciou sua firme decisão:
— Não batizo, de jeito nenhum! Onde já se viu dar o batismo a gente de candomblé?
Isso tudo aconteceu muito antes do Concílio Vaticano II, do ecumenismo religioso, da posição tolerante dos católicos em relação às outras religiões. À época, a Igreja Católica considerava-se a dona única da religião, não querendo saber de sincretismos. Sua posição era de confronto com as outras religiões, especialmente as de origem africana.

Assustada, minha avó explicou que meus pais não frequentavam candomblés:
— Não, não. Eles são é intelectuais, o senhor conhece bem Jaci. Ela e o marido gostam dessa coisa de cultura do povo, por isso escolheram esse nome para a menina. É uma homenagem à cultura popular, eles dizem, e... — a pobre avó tentava explicar o que ela não compreendia bem nem aceitava.
— Cultura popular coisa nenhuma, dona Bebé! Onde já se viu escolher para a pobre criança um nome de candomblé? A menina vai levar essa marca para o resto da vida! Não batizo!
Meu avô interferiu seriamente, argumentando sobre o prejuízo maior que a atitude do padre traria à criança – embora inocente do erro dos pais, ela seria impedida de pertencer ao corpo de fiéis da Igreja... O padre, contudo, continuou firme em sua posição.
Após muita controvérsia, o avô — deputado estadual à época, fiel de influência, portanto — resolveu lembrar ao padre o sério prejuízo financeiro, moral e social que sua atitude poderia acarretar à paróquia de Nazareth... Ameaça velada, que o padre compreendeu e à qual se mostrou sensível:
— Então eu batizo. Mas com uma condição: na certidão, o nome tem de ser Janaína Maria!

Assim foi feito. O padre, a contragosto, oficializou seu primeiro sincretismo religioso, meus avós saíram felizes da igreja, e eu tenho esta história pra contar.

Imagem:
Postais Pau Brasilis

quinta-feira, 18 de junho de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Konstantinos Kaváfis


Ele é considerado o mais importante poeta grego da primeira metade do século XX, e um dos maiores do mundo em sua época. Konstantinos Kaváfis (grafa-se também Constantino, Konstantino, Constantinos, Cavafis, Caváfis, Kavafis... Tanto faz, pois o nome é originalmente escrito em alfabeto grego) nasceu e morreu (1863-1933) em Alexandria, Egito, de família grega, originária de Constantinopla. Devido a problemas econômicos, seus pais trocaram Alexandria pela Inglaterra quando Kaváfis era criança, ali vivendo durante sete anos. Este período inglês — reforçado por visita à Grã-Bretanha, quando o poeta era adulto — foi muito importante para Kaváfis, que se tornou grande conhecedor e admirador da literatura inglesa, escrevendo inclusive poemas em inglês (além dos que escreveu em grego, a maioria, e dos poucos em francês).
De volta a Alexandria, viveu tempos de grande dificuldade econômica, até conseguir emprego na Bolsa de Valores, onde trabalhou durante muitos anos. Escreveu poemas desde bem jovem, mas se manteve afastado dos eventos e círculos literários. Publicou seus poemas em revistas literárias ou simplesmente os ofereceu aos amigos. A primeira coletânea de sua poesia foi publicada em 1935, dois anos após sua morte.
Kaváfis esteve várias vezes na Grécia e visitou a França, mas Alexandria foi o centro de sua vida. Homossexual assumido, levou vida discreta, incorporando o tema da homossexualidade à sua poesia. Seus versos unem as tradições helenísticas (pelas quais era apaixonado), que têm mitologia e formas literárias próprias, às preocupações e à linguagem do tempo em que viveu, inclusive com o emprego, pouco usual à época, da linguagem coloquial. Poeta de extraordinária imaginação, Kaváfis tem hoje uma legião de admiradores em todo o mundo. Existem traduções de seus poemas para o português feitas por portugueses e por brasileiros.

O poema a seguir é provavelmente o mais conhecido de Kaváfis. Foi ao lê-lo que me apaixonei pela poesia do autor, daí em diante sempre que posso retornando aos seus versos:

Ítaca

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

(Tradução: José Paulo Paes. Para tradução do mesmo poema por Haroldo de Campos, clique
aqui)

O poema a seguir sempre me comoveu. Não descubro onde está seu apelo, sua magia. Só sei que o releio sempre:

O Sol da Tarde

Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.

Ah este quarto, não é nada estranho.

Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.

Estarão ainda os coitados nalgum lugar.

Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.

...De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só . . . Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.


(Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis)

Este é outra maravilha, em tradução de José Paulo Paes:

Muros

Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
ergueram à minha volta altos muros de pedra.
E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.
Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

Para encerrar, esta obra-prima:

Quando Elas Despertam

Procura guardá-las, Poeta,
por poucas que sejam de guardar,
do teu amar as visões.
Coloca-as no meio ocultas nas tuas frases.

Procura detê-las, Poeta,
quando em tua cabeça elas despertam,
de noite ou na luz crua do meio-dia.

(Tradução: Jorge de Sena)

[Recentemente, Antônio Cícero postou "Quando Despertam", lindo poema de Kaváfis, em seu
blog. Vários leitores acrescentaram lá , nos comentários, outros poemas/traduções do poeta. O Adriano Nunes sugeriu que eu postasse "Muros" aqui. Foi por causa dessas relembranças de Kaváfis que decidi escrever este post.]

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Colo


Têm dias, sabe, em que me sinto completamente sozinha no mundo. Tô fazendo alguma coisa - passeando, por exemplo, ou estudando -, aí me bate uma solidão absoluta, como se ninguém existisse no planeta, apenas eu, perdida entre as altas dunas amarelas de um deserto onde o vento é tão forte que me seca o corpo e carrega para sempre a minha alma. Nesses momentos é ótimo encontrar seus olhos escuros, atentos, atenciosos. Só eles conseguem me trazer de volta a luz e a alegria do mundo.

Às vezes eu me sinto muito fraca diante da vida. Todos são mais bonitos, mais fortes, melhores do que eu. Os meus colegas são mais espertos, as minhas amigas, mais belas, e até Juliana, a irmã caçula, está conseguindo muito mais sucesso do que jamais tive. Sou poeira, cisco que a ventania leva para onde quer e depois deposita junto aos caranguejos da lama. A mais fraca de todos os seres, nem consigo carregar meu próprio peso. Ando curvada. Sugada por alguma força misteriosa, minha energia escorre por um ralo enorme que nem sei onde está. Por isso, de noite, me tranco sozinha no quarto. Choro sem ninguém ver, baixinho, cara enterrada no travesseiro. Se no caminho pro meu quarto, porém, eu encontro você, e se você, parecendo que percebe o que vai dentro de mim, ou mesmo sem perceber você me abraça, me beija, me afaga, então vou sentindo renascer a vida, no começo fraca, aos poucos mais intensa, espalhando-se pelo corpo desde o centro, o meu umbigo. Às vezes melhoro tanto que desisto de chorar. Vou ficando por ali mesmo, plugada na sua tomada, mina das minhas energias. Afinal, se você gosta de mim, diabos! eu não posso ser tão fraca e ruim assim.
Lembra da última vez em que tratei você super mal, quando lhe fiz aquela má-criação tamanho gigante? Eu andava nervosa, tudo naquela época estava dando errado pra mim. Até o papagaio da vizinha implicava comigo! Descontei em você, a mais próxima, a primeira que me apareceu pela frente naquela noite, reclamando não me lembro mais do quê. Fui grossa demais. O pior é que nem notei, mergulhada na minha própria vidinha, no meu redemoinho particular, apartada dos sentimentos alheios. Só muitos dias depois percebi o tamanho da minha estupidez, e sabe como? Senti falta do seu riso. Meu astral já estava melhor, o mundo parecia aos poucos voltar aos eixos, mas, se era assim, por que então aquela tristeza, logo na hora do jantar? Vi de relance seu rosto cabisbaixo, olhos desconsolados acompanhando os movimentos da faca na toalha... Na saudade do seu riso, lembrei da minha explosão de dias antes, juntei causa e consequência. O remorso que senti, sei, foi egoísta: “Não posso feri-la de novo”, lembro que pensei, “pois eu não suportaria viver sem o riso dela.”

Só pra terminar: até hoje, do que mais gosto na vida são dos seus colinhos! Tô sabendo - sou grande demais pra colo, nunca sei direito onde colocar esses braços e pernas tão finos que cresceram desmesuradamente, escapando desordenados para todos os lados, sei que dói em você quando pulo em cima... Mesmo assim, repito: eu, a garça pernalta, até hoje adoro o seu colinho! Ele é como um útero, acolhedor e calmo, silencioso, quentinho... Traz paz. Seu colo é bom demais, minha filha!

[ Este texto faz parte de uma série que estou escrevendo para adolescentes]
*Imagem daqui

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Quem somos, mesmo?



Uma conhecida anedota conta que, ao criar o Brasil, Deus caprichou: praias belíssimas, terra fértil, água abundante, paisagens de tirar o fôlego, vegetação esplendorosa, clima ameno... Sentindo-se injustiçados, os outros países logo protestaram junto a Deus, que lhes respondeu:
— Calma, esperem só para ver o povinho que eu vou colocar lá!
A anedota desnuda uma das mais significativas representações da nação brasileira, presente tanto nas idéias, sentimentos e imaginação populares, quanto nas produções e círculos de intelectuais, artistas e profissionais da mídia. O núcleo dessa representação reside na profunda separação entre, de um lado, a “terra boa”, o belo país “abençoado por Deus e bonito por natureza” cantado por Jorge Benjor, de que nós, brasileiros, tanto nos orgulhamos, e, de outro lado, o “povo ruim”, a gente brasileira que não está à altura da beleza e fertilidade do país. A “ruindade” do povo (ou seja, a “ruindade” de cada um de nós), dependendo de quem fala, de quando fala e para quem fala, é explicada pela mistura ou degeneração das raças, pela preguiça, corrupção, presença de degredados, falta de patriotismo, séculos de colonialismo, escravidão, superexploração econômica, herança católica ibérica, malandragem, preconceitos, atraso, etc.
Essa postura inferiorizada costuma vir alternada com efusivas, e igualmente obsessivas, afirmações acerca das maravilhas do país Brasil, não só da sua terra, mas do seu povo, apresentado como cordial, guerreiro, alegre, honesto, amigo, sem preconceito racial, inteligente, musical, obediente, capaz, heróico, patriota, atleta e trabalhador, um povo muito melhor do que qualquer outro existente no planeta. Esse conjunto de idéias afirmativas e orgulhosas, que com freqüência descamba para o nacionalismo exaltado, representa a outra face da mesma moeda.
Os dois tipos de representação, tanto a que nos deprime como a que nos exalta, remontam ao início do período colonial, e vêm de muitas formas se adensando entre nós. Elas nos envolvem a todos em suas teias invisíveis, a ponto de existir hoje, no país, uma obsessão nacional acerca da própria identidade, num grau e intensidade que não acontece nos Estados Unidos nem nos países europeus.
Como um pêndulo, nós nos movimentamos entre a sensação de que, no fundo, há algo de profundamente errado conosco, de que nunca “damos certo” — incapazes que somos de construir a nação que desejamos; e, no pólo oposto, a também persistente sensação de que somos fantásticos, maravilhosos, capazes de estourar a boca de qualquer balão, e por isso exibimos esse imenso e desmedido orgulho de sermos brasileiros.
Nos limites desse pêndulo — que é uma armadilha —, nós vivemos nos perguntando obsessiva, agitada, angustiadamente que país é este, e qual será o nosso destino: um mítico abismo infalivelmente nos ronda, mas um pote de ouro e felicidade também nos espera logo ali, na esquina do futuro. Deslocados, vivemos em busca de nossa identidade.
[Este meu texto saiu publicado na úlima “Revista de História da Biblioteca Nacional”, Ano 4, nº 45, Junho 2009, atualmente nas bancas.]

terça-feira, 2 de junho de 2009

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