terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Derek Walcott: sobre traduções e plágio

No post anterior, apresentei o poeta caribenho Derek Walcott, seu poema "A far cry from Africa" (um dos meus preferidos), e a tradução do poema em português, feita por Thereza Christina Rocque da Motta. Hoje, apresento-lhes uma outra tradução do mesmo poema, realizada por Ricardo Cabús. Minha intenção é tanto homenagear Walcott – um dos mais importantes poetas contemporâneos, ainda pouco conhecido no Brasil –, como homenagear os tradutores (estes seres tão amaldiçoados), chamando a atenção para seu difícil trabalho: pois as possibilidades que cada tradutor tem diante de um texto são múltiplas, quase infinitas, e não é fácil decidir entre elas. Isso se pode comprovar pela simples comparação entre as duas traduções apresentadas, aqui e no post anterior. Ricardo e Thereza buscaram soluções próprias para os desafios que encontraram, ao traduzir o difícil poema de Walcott. Daí provêm as diferenças entre suas traduções. As razões de suas escolhas, eles próprios saberão justificar.

Pois bem: havia eu preparado os dois posts (este, pensei em publicar somente daqui a alguns dias, para os leitores terem tempo de ler o anterior), quando uma notícia me chamou a atenção hoje: a tradutora Denise Bottmann, em seu blog naogostodeplagio.blogspot.com, havia denunciado que as traduções de O Morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, e Persuasão, de Jane Austen, publicadas pela editora Landmark, eram plágios de antigas traduções portuguesas. Para comprovar, Denise apresentou trechos das traduções em Portugal e no Brasil, demonstrando que elas são praticamente idênticas, inclusive nos erros. Pois bem: por denunciar uma farsa, Denise... está sendo processada pelo proprietário da editora, que entrou inclusive com liminar (que o juiz negou), para que o blog fosse preventivamente retirado do ar! Ficam nossos protestos contra todos os tipos de plágio, assim como nossa solidariedade àqueles que têm coragem de denunciar e comprovar os plágios.

Abaixo, o poema de Walcott em tradução de Ricardo Cabús (original do poema no post anterior), a provar que uma tradução jamais é igual a outra, e que suas diferenças não residem em pormenores apenas, mas nas escolhas substanciais dos tradutores, esses recriadores:


Um grito distante da África

Um vento está eriçando a pele morena
Da África, Kikuyu, rápido como moscas,
Deleitando-se na corrente sanguínea da savana.
Cadáveres são espalhados por um paraíso.
Apenas o verme, coronel da carniça, grita:
“Não tenham compaixão com estes mortos isolados!”
As estatísticas justificam e os estudiosos apreendem
As saliências da política colonial.
O que é isso para a criança branca mutilada na cama?
Para selvagens, dispensáveis como judeus?
Esmagados por agressores, os longos ataques irrompem
Em uma nuvem branca de íbis cujos gritos
Ecoam desde o amanhecer das civilizações.
Do rio ressequido ou de planícies repletas de animais
A violência entre as feras é entendida
Como uma lei natural, mas o homem ereto
Busca sua divindade infligindo dor.
Delirantes como estas bestas atormentadas, suas guerras
Dançam ao som agudo de um tambor,
Enquanto ele ainda chama coragem esse medo nativo
Da paz branca conquistada através dos mortos.

De novo, a necessidade estúpida limpa suas mãos
No guardanapo de uma causa suja, de novo
Um desperdício de nossa compaixão, como com a Espanha,
O gorila luta com o super-homem.
Eu que estou envenenado com o sangue de ambos,
Para onde devo seguir, com a veia dividida?
Eu que tenho xingado
O funcionário britânico viciado, como escolher
Entre esta África e a língua inglesa que eu amo?
Trair ambas ou devolver o que elas dão?
Como posso enfrentar tal massacre e ficar bem?
Como posso abdicar da África e viver?


Derek Walcott
(Tradução de Ricardo Cabús, poeta, tradutor e professor brasileiro)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um grito distante da África


Nascido em 1930 no Caribe, na pequena ilha de Santa Lúcia, ex-colônia britânica, Derek Walcott ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1992. É considerado um dos maiores poetas contemporâneos de língua inglesa. De sintaxe e pensamento complexos, articula questões dentro do que se convencionou chamar “literatura pós-colonial”, ou seja, a literatura dos escritores nascidos em ex-colônias, que, hoje, interrogam o futuro e o presente à luz do que a história lhes plasmou. Apaixonei-me pela poesia de Derek Walcott desde que li o poema abaixo; gosto especialmente da segunda estrofe. Desconheço traduções de livros de Derek Walcott no Brasil: já passou da hora de termos sua obra divulgada aqui.

PS: Meu amigo Sidney Wanderley me fez ver que, em 1994, a Companhia das Letras publicou a principal obra de Derek Walcott, Omeros, em tradução de Paulo Vizioli. Obrigada, Sidney, fica o registro aqui. E lá vou eu, correndo, comprar este livro!

Um grito distante da África


Um vento brame o escuro tambor
da África, dos Kikuyu, rápido como moscas,
que vivem nas veias que cortam os campos.
Cadáveres se espalham pelo paraíso.
Apenas o verme, nos restos mortais, exclama:
– Não se compadeçam destes infelizes!
As estatísticas justificam e os especialistas se agarrama
os aspectos da política colonialista.
O que é isto para a criança branca mutilada em sua cama?
Para os selvagens, desprezíveis como os judeus?
Flagelada por batedores, os longos ataques rompem
em brancas nuvens de íbices, cujos gritos
reverberam desde os primórdios das civilizações
do rio seco ou das planícies repletas de animais.
A violência entre animais é vista
como lei natural, mas o homem ereto
busca a divindade infligindo a dor.
Loucos como animais horrendos, suas guerras
dançam ao som abafado dos tambores,
enquanto clama por coragem esse temor nativo
da branca paz contraída pelos mortos.

Novamente a necessidade brutal lava as mãos
no guardanapo de uma causa suja, novamente
desperdiça-se nossa compaixão, como na Espanha,
o gorila se bate com o super-homem.
Envenenado pelo sangue de ambos,
o que me restará, dividido ao meio?
Eu que xinguei
o oficial embriagado pela lei britânica, como escolher
entre esta África e a língua inglesa que amo?
Trair os dois, ou dar a eles o que me dão?
Como encarar essa mortandade e manter-me lúcido?
Como dar as costas à África e viver?

Derek Walcott
(Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta, poeta, tradutora e editora brasileira)

A far cry from Africa

A wind is ruffling the tawny pelt
Of Africa, Kikuyu, quick as flies,
Batten upon the blood streams of the veldt.
Corpses are scattered through a paradise.
Only the worm, colonel of carrion, cries:
"Waste no compassion on these separate dead!
"Statistics justify and scholars seize
The salients of colonial policy.
What is that to the white child hacked in bed?
To savages, expendable as Jews?
Threshed out by beaters, the long rushes break
In a white dust of ibises whose cries
Have wheeled since civilizations dawn
From the parched river or beast-teeming plain.
The violence of beast on beast is read
As natural law, but upright man
Seeks his divinity by inflicting pain.
Delirious as these worried beasts, his wars
Dance to the tightened carcass of a drum,
While he calls courage still that native dread
Of the white peace contracted by the dead.

Again brutish necessity wipes its hands
Upon the napkin of a dirty cause, again
A waste of our compassion, as with Spain,
The gorilla wrestles with the superman.
I who am poisoned with the blood of both,
Where shall I turn, divided to the vein?
I who have cursed
The drunken officer of British rule, how choose
Between this Africa and the English tongue I love?
Betray them both, or give back what they give?
How can I face such slaughter and be cool?
How can I turn from Africa and live?

Derek Walcott

*Imagem daqui.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Tempos dionisíacos


Dyonisio

Ungido para o fado e a nova festa
meu carnaval profano já celebra
as quarentenas dívidas da carne Adicionar imagem
na cela de costela das mulheres.

Como devasso réu, confesso fauno,
no vinho das delícias me declaro
sem culpa e sem pecado original
pois nessa pena sou igual a tantos.

Já disse certa vez em cantoria:
de nada me arrependo e reconfirmo
agora que o meu tempo é só de gozo.

A vida que me dou não dá guarida
nem guarda desalentos de tristeza
somente na alegria é que me morro.


Anibal Beça

(Palavra parelha. Edições Galo Branco, 2008, p.189).


[Outro dia, topei com um lindo poema de Anibal Beça no Gira Mundo!. Comentei lá que não conhecia o poeta, mas aquele seu poema havia me encantado. A poeta Nydia Bonetti, em e-mail para mim, reforçou a qualidade de Anibal Beça. Animada, adquiri um livro do poeta, Palavra parelha e outros poemas, nele descobrindo uma poesia (que eu antevira precisa e seca, imaginem) caudalosa, múltipla, lúdica, cuidadosa, inteligente, desigual porém inesgotável, em formas, temáticas, fascínio: poesia amazônica, que me fisgou, poesia-boto encantada, chegada via blogosfera – obrigada às duas e-amigas –, que veio para ficar comigo, em casa, no coração, na imaginação.

Homem de múltiplas atividades, poeta, compositor, jornalista, Anibal Beça nasceu em Manaus (1946), onde também faleceu, no ano passado, aos 63 anos de idade. Deixa obra vasta, em poesia, ensaios, letras de música, crítica e artigos jornalísticos, que merece ser cada vez mais conhecida, divulgada e estudada, e da qual o lindo soneto acima é pequena amostra.]
* Imagem: Baco, de Caravaggio

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A Chave da Casa, de Tatiana Salem Levy









Para escrever esta história, tenho de sair de onde estou, fazer uma longa viagem por lugares que não conheço, terras onde nunca pisei. Uma viagem de volta, ainda que eu não tenha saído de lugar algum. Não sei se conseguirei realizá-la, se algum dia sairei do meu próprio quarto, mas a urgência existe (p.12).

Ao terminar de ler, muito emocionada, A Chave da Casa, fiquei pensando sobre qual seria o tema principal do livro. O primeiro que me ocorreu foi a dor, depois pensei na viagem e, finalmente, cheguei à herança. O livro é sobre tudo isso, uma travessia encharcada de dor em busca da própria herança: uma neta recebe do avô a chave da casa que ele deixara em Esmirna, ao emigrar da Turquia para o Brasil, e decide buscar em terras estranhas a própria história. O livro é também sobre outras coisas – memória, doença, sexo, afeto, corpo, amor, medo… –, enfim, sobre o que importa na vida. O espantoso é que a autora tinha apenas 28 anos em 2007, quando publicou este primeiro romance, que, pela densidade, parece ter muito mais do que as suas 206 páginas.

A Chave da Casa
ganhou o Premio São Paulo de Literatura de 2008, como melhor livro estreante, e no mesmo ano foi finalista do Jabuti e do Zaffari e Boubon, de forma que muito já foi escrito sobre ele. Minha intenção aqui é modesta: recomendar com entusiasmo a leitura do romance – além da qualidade literária, é também daqueles que a gente não consegue largar, inteiramente rendida a seus mistérios e tramas —, e registrar alguns sentimentos e ideias que tive, à medida que lia.

Tatiana Salem Levy denomina seu livro de “autoficção”, isto é: apesar da narrativa ser em primeira pessoa, não são memórias da autora. É um texto que usa o material da memória de forma criativa, sem muito compromisso com os acontecimentos em si, mas com os significados afetivos dos acontecimentos, e com seu rendimento literário.

Adorei a ideia de “autoficção”. Como o leitor nunca sabe o que “aconteceu de fato” (como se isso existisse) na vida de Tatiana e de sua família, e o que foi inventado ou livremente associado por ela, fica perdido no jogo verdade x mentira. E acaba por desistir dele, mergulhando na narrativa pelo que ela é, uma ficção que atrai, emociona e se sustenta por si mesma, descolada da veracidade dos fatos, apoiada na veracidade dos sentimentos. Tatiana resolve assim a dicotomia entre teoria, história e memória, de um lado, e ficção, do outro, o que para ela deve ter sido em algum momento uma questão importante, já que este romance – pasmem – foi originalmente apresentado como tese de doutorado à PUC do Rio, na área de literatura brasileira contemporânea.

A voz da narradora (que, no romance clássico, representa A voz da autoridade), neste romance é frequentemente desautorizada pela voz da mãe, que a recrimina por ser dramática demais, passando a recontar os mesmos fatos a partir de outros sentimentos e perspectivas. Assim a narradora conta o próprio nascimento:

Nasci no exílio em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. […] Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não estava lá. Penou, minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quanta acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical. (p.25)

Mas, logo a seguir, entra a voz da mãe:

Lá vem você, narrando sob o prisma da dor. O exílio não é necessariamente sofrido. No nosso caso, não foi. […] Quando você nasceu, não estava frio nem cinzento. Não penei para parir. Não tomei anestesia geral nem tenho cicatriz, você nasceu de parto normal.
(p.26)

Assim, o leitor não apenas não consegue distinguir o que foi fato ou invenção em A Chave da Casa, como fica exposto a diferentes formas de inventar, uma desautorizando (na verdade, complementando) a outra, a diferentes versões para o mesmo fato (concreto ou criado). Isso é que é provocar os leitores...

O livro gira em torno de três eixos: a viagem da narradora à Turquia e Portugal, em busca da própria história; a relação, fortemente sexualizada e com características sadomasoquistas, entre a narradora e um homem; e a doença e morte da mãe da narradora. As três histórias se intercalam, mas seus enredos não são entrelaçados. E no entanto existem muitos laços entre elas, já que foram vivenciadas e contadas pela mesma pessoa, cabendo ao leitor descobrir ou imaginar quais são. Minha imaginação já voou um bocado em torno disso, a começar do corpo purulento da jovem que recebe a chave do avô, passando pelo corpo dominado pelo prazer da mesma jovem, ao corpo que, para não ser vencido pela morte, dialoga com fantasmas. O círculo é infinito, o leitor pode arrumá-lo e desarrumá-lo como desejar.

Meu único reparo ao livro vai para a parte final, quando os conflitos começam a ser “resolvidos”. Tive um pouco a sensação de pressa, como se a autora precisasse encerrar logo as histórias tão bem trabalhadas ao longo do romance. Não gosto da cena da tortura da mãe, que me parece excessiva (foi excessiva também na vida, eu sei), nem da cena do assassinato: as duas me parecem pesar sobre a narrativa, enfraquecendo-a. Mas o fechamento de A Chave da Casa, que li sempre profundamente comovida, à beira do choro ou em lágrimas, volta a ser magnífico.

Como é bom encontrar novos grandes autores na literatura brasileira.

*Imagens: capa do livro e foto da autora.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Borboleta – a passagem


Quando eu viro borboleta fico fininha, fininha, trespassada de luz. Na leveza do meu ser vejo o mundo lá de cima, sinto a brisa deliciosa da primavera roçar as extremidades das minhas asas.

Conheço todas as flores da casa pelo cheiro. Ao nascer do dia, as antenas me levam até o perfume estonteante dos crisântemos; com o sol a pino, sou atraída pelo frescor das folhas de laranjeira, os delicados aromas dos miosótis me seduzem no fim da tarde. Vagabunda dos ares, adoro oferecer-me ao sol que, em troca, vai mudando minhas tonalidades de acordo com sua posição, ao som das músicas do universo que as pessoas não conhecem, mas as borboletas ouvem, sim. Quando viro borboleta sou solta, sou leve, sopro livre de vida do planeta.

Muitas pessoas acham as borboletas superficiais, inconstantes, espécies de dondocas do ar. Nada mais falso. Nós, borboletas, existimos desde tempos imemoriais, nascemos no instante mesmo da criação do universo. E, antes de ser borboleta, fomos lagarta. Como lagarta conheci os sofrimentos dos mundos subterrâneos, compartilhei os gritos dos condenados para sempre à escuridão, ouvi e emiti o murmúrio surdo, ressentido, das entranhas da terra. Arrastei-me aos pés dos outros, comi pó, me alimentei de beiradas de folhas, virei alimento de pássaros. Apesar dos meus esforços para disfarçar-me, como lagarta fui pisoteada, humilhada e morta, a pau, a pedra, a inseticida.


Vivi também a imobilidade e o silêncio da crisálida. Pendurada em algum canto escuro de uma parede esquecida, ou colada a um tronco onde não podiam me distinguir, grávida da beleza vivenciei a doação extrema que é morrer, para dar vida a outro ser. Antes de me extinguir como crisálida, porém, durante aquele período de completo isolamento, tornei-me totalmente translúcida. Limpa das maldades do mundo, pude renascer borboleta.

Nós, borboletas, somos seres depurados. Nos quarenta breves dias de minha vida, recolhi e experimentei todos os tumultos, traições, invejas e culpas espalhados pelos ares e, ao fazer isso, ajudei a purificar o planeta. Respondi aos imensos desafios da minha curta existência modificando-me por inteiro. Por duas vezes transmutei-me em outro alguém, completamente diferente do anterior. Nós, borboletas, somos essência, sumo purificado dos séculos, ar nascido do barro, sofrimento expurgado: delicadeza. Os antigos gregos, que tudo sabiam, descobriram também meu verdadeiro nome: Psyché, a alma, aquela que, liberta do corpo, borboleteia pelos céus descaradamente bela, entre flores e deuses.

Quando eu era bem pequena, me sentia borboleta o tempo inteiro, o vento tocando as pontinhas das minhas antenas, que tremelicavam quando eu mexia a cabeça cheia de cachos. Se alguém entrava na sala e me surpreendia toda colorida batendo as asas, cheirando flores, respirando pelos buraquinhos invisíveis do meu corpo ou brincando com as mariposas enquanto vestia bonecas e afagava bichos de pelúcia, este alguém invariavelmente abanava a cabeça, sorrindo: Criança pequena tem cada uma! Resultado: eu continuava borboleta, e elas, gente.

Com o tempo, percebi que os adultos estranhavam cada vez mais meu comportamento. Olhavam-me sérias, ar preocupado: O que tem essa menina, que não larga das flores? E essa mania agora de dizer que já foi largarta, história mais esquisita! Não tardaram as recriminações, as ordens, os tapas. Surpresa, sofrida, compreendi enfim que eu não era apenas borboleta, era borboleta e menina.

Dupla identidade difícil de gerir, pois os dois mundos, o das borboletas e o dos humanos, não se tocam, jamais se comunicam: opõem-se. Junto à bivó e à Pingá, minha querida cachorrinha, nas horas gostosas do banho, de sonhar acordada, chupar sorvete de manga, receber e dar carinho, andar descalça esparramando os dedos dos pés, nessas horas eu me transformo na mais linda borboleta cor de anil do mundo, salpicada de pintas e estrelas, dona de dois falsos olhos que enlouquecem qualquer ser alado. No restante do tempo, sou gente mesmo.

Sinto que meu tempo de borboleta está terminando. Minhas asas tornam-se cinzentas e nem sempre me obedecem. Meus vôos são agora tortos, desajeitados. Não consigo mais fazer meu corpo respirar inteiro. Definitivamente, perdi aquela capacidade de me soltar pelo mundo em busca do sol, de migrar com as amigas para longe do frio, voar rumo à luz, ao calor, às cores tropicais, àquele lugar mágico onde terra e mar se encontram, e se antevê o paraíso. Aflita, tento economizar ao máximo meu eu-borboleta, mas ele se esvai. Sinto que muito em breve não mais existirá. Por quê? Estou deixando para sempre a infância.

E todo mundo sabe: adulto não voa.


* Imagem daqui.

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