(Foto originalmente postada aqui)Ananias apoiou o peso da velha carcaça sobre a bengala e se concentrou na lenta, dolorosa descida até a cadeira de lona. O tremor nas pernas atrapalhou, o maldito tronco pendeu para frente e para trás, faltou fôlego e uma dor fina picou a base da coluna, fazendo-o gritar. Largou o corpo, mas calculou mal a distância. Caiu enviesado, a cabeça contra a borda de madeira, o corpo afundado na lona gasta do assento, a mão direita longe da bengala. Fechou os olhos, para se recuperar do esforço extremo de sentar-se e para disfarçar a humilhação por sua velhice, exibida em público, sob a claridade implacável da manhã.
Livrando-se dos chinelos, enfiou os pés com todo o gozo na areia. Lentamente, reabriu os olhos. Diante do mar, o feixe de rugas em que seu rosto se transformara desanuviou-se, o couro das bochechas afastou-se para os lados. Sorriu, iluminando o semblante. O mar! Nada o transportava tão imediatamente à infância quanto o cheiro, a luz, o céu, o sal do mar. Ananias regressou à casa branca da família, no meio da enseada, diante dos barcos de pesca. Pequeno ainda, pulava da cama assim que ouvia – era o único que ouvia – o andar muito leve do pai mal tocando o assoalho. Corria com seus passos miúdos até a porta da casa, recebia na cara o esplendor vermelho do sol e, contra esse sol, admirava a figura esguia do pai afastando-se rumo ao mar. O pai o proibira de misturar-se aos pescadores: Lugar de menino pequeno é dentro de casa, até hoje Ananias podia ouvir, como se ali ao seu lado na praia, a voz severa e pausada, a voz do pai. Da soleira da porta o menino encantava-se com o movimento dos pescadores na areia, a rolagem dos barcos para a água e o balanço sobre as ondas, primeiro as ondas pequenas e mansas, logo as enormes e raivosas, até pescadores e barcos se transformarem em minúsculos pontos tragados pelo horizonte. Da areia subia um vento de conchas que se misturava aos cabelos do menino e o entontecia de prazer. Enquanto isso a mãe, a dos cheiros marinhos, começava a aquecer...
Diante do mar, Ananias continuou refugiado na memória, desde alguns anos seu esconderijo, seu mundo preferido, o mais secreto, o mais amado. No mundo real – o do tempo dos relógios, por onde circulavam a tirana da filha, os netos barulhentos e egoístas e, em parte, também Etelvina, sua mulher – , no mundo real afundava em doenças e dores que lhe devastavam o corpo; perdia-se em meio a controles remotos microondas computadores celulares dvds dvis e outros malditos aparelhos que não sabia nem desejava usar, mas entupiam o apartamento da filha onde morava, atormentando-lhe a existência; no mundo real sentia-se um velho rejeitado, sem tesão audição força memória poder nem visão, arrastando um precioso saco de lembranças que ninguém estava interessado em conhecer.
.....a mãe, a dos cheiros marinhos, aquecia a casa com o calor do seu fogo, aceso no fogão de lenha. No passo miúdo, o pequeno Ananias corria para ela. Abraçava-lhe as pernas, quentes, macias. Sai daí, menino. Tá me atrapalhando, atrás dela o fogo vermelho ardia. A voz chegava suave, o menino insistia, rodeava a mãe, agarrava-lhe a saia, puxava-lhe a saia, pulava sobre os pés descalços, beijava-lhe as pernas. Por fim, ela achava graça: Menino mais tonto, ria balançando a cabeça, a lenha do fogo a estalar atrás. Carregava-o no colo. Ele então, coraçãozinho leve, leve, se agarrava depressa ao pescoço quente, deitava a cabeça no ombro e mergulhava o nariz nos cabelos encaracolados. Deixava-se ficar ali, quieto, narinas abertas, sentindo o cheiro marinho dela... o mesmo que às vezes ainda sente no ar, como agora, transportado pela lufada que faz girar o cata-vento de um menino à sua frente.
À medida que mergulhava na infância, construtor de um novo tempo antigo, Ananias percebia o mundo real vago, longínquo. Afligia-se com isso. Primeiro, algumas palavras recusaram-se a visitá-lo. Surpreendia-se parado no meio da sala, a frase suspensa no ar, incapaz de concluir o pensamento: Então aquele rapaz, o... o..... o.... o...... Muitas vezes Etelvina, sua mulher há mais de cinqüenta anos, ajudava-o, completando o nome esquecido. Mas aqueles lapsos se tornaram tão comuns que os netos até inventaram uma música para a ocasião, uma paródia cantada a plenos pulmões, pés batendo no assoalho e lágrimas pulando dos olhos, de tanto riso. Sinal de enfado com a mão descarnada, a significar um altivo Deixa pra lá!, Ananias retirava-se para o quarto, mortificado. Horas, às vezes dias depois, a palavra fujona voltava-lhe de súbito à memória. Tarde demais, ninguém estava interessado no assunto, que nem ele mesmo sabia mais qual era.
A princípio Etelvina e ele sorriam desses esquecimentos:
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Minha velha, se prepare, que o seu velho aqui está ficando gagá! Etelvina balançava a cabeça em silenciosa negativa, beijava-o nos cabelos e tudo se esquecia, inclusive o esquecimento.
Depois os rostos do mundo real se esfumaçaram, desmaiados em bruma. De repente alguém saltava do meio do nevoeiro, cumprimentava-o com toda a intimidade, tapinhas nas costas, E aí, Ananias? Firme? Como vai a comadre Etelvina? Ele, parado, atônito, sem a menor idéia de quem se tratava. De nada adiantaram remédios, médicos nem exercícios para avivar a memória. Aos poucos Ananias transformou-se em um sujeito inconveniente, confundindo frases e comportamentos. A filha proibira-o terminantemente de jantar à mesa, quando houvesse convidados. Que me importa? Eu tenho horror a esses seus ricaços!, gritava à filha, bengala em riste, mortalmente ofendido.
O mundo real foi se tornando cada vez mais obscuro. Pior: à falta de identificar rostos, lugares, falas, corpos, gestos, cheiros, fotos, o mundo se tornou irreconhecível. Um lugar sem sentido. Ananias teve plena, embora breve, consciência disso certa madrugada, quando pulou da cama ao ouvir o andar muito leve do pai no assoalho, correu até a soleira da porta e.... ao invés dos pescadores com seus barcos coloridos na areia, um bando de desconhecidos o rodeavam, a gritar e gesticular. Conduzido com muito custo de volta ao quarto, só se deu conta da confusão que causara – quisera sair do apartamento pela janela, para alcançar a praia onde o pai pescava – ao perceber o alarme nos olhos de Etelvina. Os olhos de Etelvina, não os de sua mãe, não os de seu pai, idiota! Os olhos malva de Etelvina, os belos olhos malva de Etelvina pelos quais se apaixonara um dia, e, louco de amor, jurara adorar, alegrar e proteger para sempre, até que a morte os separasse! Esses mesmos olhos da amada, parceira da longa caminhada, observavam-no de muito longe, de algum ponto remoto, assutados, alarmados – reprovadores!
Ananias finalmente compreendeu. Como a árvore de raízes fortes e fundas que sempre fora, Etelvina permanecia arraigada ao mundo real. Já ele, pescador de nuvens, oscilava agora sobre ondas entre dois mundos, cada vez mais distante da terra do presente, cada vez mais próximo do horizonte, barqueiro solitário rumo ao pôr-do-sol, à linha circular em que tudo termina exatamente onde começou, o hoje e o ontem para sempre confundidos.
O coração pesou-lhe. O peito curvou-se, a cabeça também pendeu. Sentado no meio da cama de imbuia escura, a mesma que há mais de meio século era dele e era dela, Ananias chorou como criança. Comovida, Etelvina achegou-se, envolveu-o num abraço demorado, beijou-lhe testa e cabelos brancos. Ananias deixou-se ficar no ombro dela, lágrimas escorrendo e narinas bem abertas, em busca de um certo cheiro marinho.
("Pescador de Nuvens", de Janaína Amado - regras para uso: Creative Commons)