terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A menina e o mar


Desde pequenina no mar. Este cheiro de mar que entra dentro dela e a deixa tontinha de alegria, com vontade de rir sem parar. À noite, dorme embalada por ondas. A menina sabe que nasceu no mar. Sua mãe abriu as coxas, eram duas montanhas separadas, as coxas fortes da mãe. Ela, a menina, veio lá de dentro da mãedeslizando, de dentro do buraco da mãe escorregou direto no mar. Nasceu com duas lindas cornucópias enfeitadas de conchas, uma de cada lado da cabeça, e com um rabinho verde-brilhante, rabinho este que logo se despregou do seu corpo, sem dor nenhuma, e ganhou vida própria, virou outro ser, independente.
Nascida enfim, a menina ficou flutuando no mar, entre mariscos tentadores, corolas amarelas – que ela não resistiu e, instintivamente, começou a esfregar com todo o cuidado pelo rosto, embora de forma ainda desajeitada –, tartarugas gigantes, bolhinhas de ar, cardumes de peixes listados de rosa e creme, e também aquelas algas transparentes, algas translúcidas que pela primeira vez lhe apresentaram a luz do sol, o que ela, menina, simplesmente adorou.
Feliz. A depender da sua vontade jamais sairia dali, daquele mar que é o seu elemento, seu ambiente, sua morada natural: aquela leveza molhada em perpétuo movimento. Porém antes que pudesse entender o que acontecia, alguém a arrancou de lá, mãos a puxaram com força – ainda viu de relance as duas montanhas da mãe se fechando para sempre. E ela, a menina, teve de começar outro aprendizado, difícil e lento, o da sobrevivência no novo ambiente. Duro, imóvel, infinitamente mais sem graça: a terra.
Sempre que pode a menina veste seu maiôzinho vermelho, que de tão gasto já está até meio pequeno pra ela e que tem um furo nas costas, segura a mão do primeiro adulto que aparece e se manda pra praia, pra areia. De braços abertos corre para abraçar o mar onde nasceu, e ali mergulha. Radiosa. Não se importa nem um pouco com os empurrões dos meninos chatos que pulam na beira, nem com os trambolhões das ondas gigantes. Ao contrário, ama ser embrulhada pelas águas, feito estrela-do-mar, feito sargaço. Esse é um brinquedo que nunca termina, recomeça a cada onda, maravilha.
Tudo ali conhece e ama, do sal da água ao picolé de fruta ao balde e às forminhas, até as conchas minúsculas que gostam de se enterrar na areia molhada, mas ela, sabida, recolhe todas, para enfeitarem as torres do seu castelo de areia. Nesse castelo mora Capitulina, a princesa-sereia prisioneira, que Floro, o príncipe-tubarão, logo salvará.
Não é assim que acontece, não, diz o adulto ao lado, ao ouvir o relato dela sobre seu nascimento no mar. — Você já está ficando grande. Tem de parar com isso, aprender como a vida é.



A menina enxerga o rosto duro do adulto, parecido com o da sua professora. Põe as mãos em concha sobre a testa, aperta os olhinhos devido à luz intensa do sol, e sorri. Com toda a paciência do mundo, explica mais uma vez o que o adulto não quer, não pode mais aprender:


Mas é assim que eu sinto.

E dispara rumo às ondas do mar onde nasceu, barrada de espuma.


[Na falta de uma foto capaz de expressar a ligação da menina com o mar, fica esta mesmo, a única que tenho sobre o tema. Se eu ainda fosse a menina, saberia colorir este mar...]

13 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Que beleza, Janaína.
Os adultos têm uma necessidade incrível de matar as fantasias.
E o que é a vida? "La vida es sueño".
Amei

Agulheta disse...

Janaína.Como gosto muito do mar somos duas a ter o desejo em entrar dentro dele,a vida é um sonho que cada um realiza a sua maneira,este será um,mas muito belo.
Beijinho Lisa

Muadiê Maria disse...

A foto é linda como seu texto. E como a menina.

querência disse...

A foto está em preto-e-branco(linda!), mas o texto é cheio de cores, de vida. Primoroso! Acho até
que ficou muito bom o contraste entre a imagem e o texto.
As imagens que descreves, além de fortes, são belíssimas e dá ao leitor a liberdadde de imaginá-las
como lhe aprouver! Gostei muito.
Bj

Dalva Nascimento disse...

E o que seria de nós sem o sonho? Lindo texto, lindo sonho...

Bjs.

nydia bonetti disse...

Eu vejo este mar azulzinho... É como eu sinto.

Que texto lindo, Janaína. Lindo!

beijo.

aeronauta disse...

Saudades de sua escrita. Lindo seu conto, esse mar imenso. Um grande abraço, querida.

- Luli Facciolla - disse...

Que delícia!

Beijos

Ana Tapadas disse...

Texto tão lindo, de ligação tão profunda ao mar/mãe! Janaína a «menina» ainda te habita.
Beijinho

Denise disse...

e se fez marolas..........sal e vida

num caminho permeado por conchinhas e estrelas do mar


Um ano de desejos realizados a vc e aos q vc ama

denise

Dois a sós disse...

Que texto maravilhoso, parabéns viu. Foto linda.

Um grande abraço do Vaganeio

Anônimo disse...

Divinos: o mar, o texto e as fotos.
Que vontade me deu de ser Verão deste lado do mar para nele mergulhar!!

Aninha Pontes disse...

Sábia menina.
Como são sábias as crianças.
Na inocência traz toda a sabedoria.
Lindo o texto.
A menina transmite amor.
Um beijo

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