segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A escrita perfeita de Raduan Nassar


Ele publicou apenas duas pequenas novelas e um livro de contos, mas é um dos maiores escritores brasileiros. Filho de imigrantes libaneses, de família numerosa (10 irmãos), nascido em 1935 no interior de São Paulo, Raduan Nassar transferiu-se aos 20 anos, com a família, para a capital do Estado, onde se formou em Filosofia e estudou também Letras e Direito, mas sem concluir. Após a publicação de seus dois romances, na década de 1970, decidiu abandonar a literatura (seu livro de contos A menina a caminho, de 1994, reuniu textos escritos anteriormente). Desde então, dedica-se a atividades agrícolas numa fazenda que comprou no interior de São Paulo. Não dá entrevistas. Recebeu prêmios importantes, foi traduzido em diversas línguas e teve dois livros transformados em bons filmes do cinema brasileiro.

A prosa de Raduan Nassar é absolutamente única, seu estilo denso e opressor, inconfundível. Em seu texto não há uma palavra a mais, um termo equivocado, uma frase sobre a qual se possa pensar: “Isto poderia ser melhor escrito!”. Seus livros compactos contém apenas aquilo que devem conter: a escrita perfeita e toda a dor do mundo.

Li primeiro Um copo de cólera (1978), seu segundo livro, densa novela urbana em que um casal em crise expõe todos os aspectos de sua conturbada relação. Escrito em apenas quinze dias, é apontado por muitos críticos como “a novela essencial da literatura moderna e contemporânea brasileira”. Quase a seguir, me debrucei sobre seu primeiro livro, Lavoura arcaica (1975), extraordinária saga familiar de imigrantes árabes, narrada em primeira pessoa, onde se fundem incesto, amor e culpa. As duas leituras balançaram completamente meu mundo, e o fizeram de forma literal: provocaram-me vertigens, falta de ar e de sono, choro, garganta seca, sensação de soco no estômago, além daquele maravilhamento diante do poder dos textos canônicos. Até hoje alguns trechos me voltam à cabeça e ao coração, sem que eu peça: simplesmente residem em mim.

Foi este o instante: ela transpôs a soleira, me contornando pelo lado como se contornasse um lenho erguido à sua frente, impassível, seco, altamente inflamável; não me mexi, continuei o madeiro tenso, sentindo contudo seus passos dementes atrás de mim, adivinhando uma pasta escura turvando seus olhos, mas a sombra indecisa foi aos poucos descrevendo movimentos desenvoltos, perdendo-se logo no túnel do corredor: fechei a porta, tinha puxado a linha, sabendo que ela, em algum lugar da casa, imóvel, de asas arriadas, se encontraria esmagada sob o peso de um destino forte; ali mesmo, junto da porta, tirei sapatos e meias, e sentindo meus pés descalços na umidade do assoalho senti também meu corpo de repente obsceno, surgiu, virulento, um osso da minha carne, eu tinha esporas nos meus calcanhares, que crista mais sangüínea, que paixão desassombrada, que espasmos pressupostos!
(Raduan Nassar, Lavoura arcaica, S.Paulo: Cia. das Letras, 3ª ed. 1989, p. 102-3)

[Este texto integra a blogagem coletiva “Vida de Escritor”, proposta pela Vanessa, do ótimo blog Fio-de-Ariadne]
* Imagem: cena do longa-metragem Lavoura Arcaica (2001), direção de Luiz Fernando Carvalho, com Selton Mello, Simone Spoladore, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha e outros.

27 comentários:

Luciano A.Santos disse...

Janaína,

Ainda não li Lavoura Arcaica mas assisti ao filme e gostei muito. Se o livro for melhor - e sempre é - com certeza é um grande livro.

Belo post, muito bem escrito. Abraços.

Susyanne Oliveira disse...

Não li nenhuma das duas obras.
Assisti Um Copo de Cólera e sou louca para ver Lavoura Arcaica.
Pelo que já vi e pelo que você escreveu prevejo que também me tornarei fã.
Belo texto.

Beijíssimo

Letícia Alves disse...

Conheço porém não li ainda, é dessas coisas que a vida nos reserva.
Talvez não estivesse no momento de ler e/ou ver o filme. Até baixei o filme "Um copo de cólera", mas não vi ainda.
Confesso que ultimamente não tenho tido tempo, mas em breve talvez.
Feliz escolha sim! Lerei e verei os filmes.
Beijos Tempestuosos e volte sempre ao blog! Os bons ventos sempre te receberão.

Cristina e Márcia disse...

Olá, Janaína
Vi "Um Copo de Cólera", mas não li nenhum livro dele. "A escrita perfeita e toda a dor do mundo" (adorei isso) é extremamente forte no momento pra mim, mas algum dia pego "Lavoura Arcaica", que gostaria muito de "tentar" ler.
Parabéns pela postagem!!!!
Beijos, Marcia

Ana Tapadas disse...

Que interessante, amiga! E eu que tenho tanto para descobrir da Literatura Brasileira!
Sinto-me uma ignorante.
Obrigada pela divulgação.
Beijinho

(cheguei do Norte)

Mari Amorim disse...

Olá,Janaina
que delicia de texto,adorei,sua participação.
Boa semana!
Boas energias
Mari

Sandra disse...

Ola!
Vim lhe dizer que a postagem já está lá. Volte e confira. Estava viajando, por isso não publiquei cedo.
Gostei do seu texto e presença do meu blog.
Com carinho
sandra

Vanessa Anacleto disse...

Que beleza, só deu Escritor gente grande na coletiva. Muito obrigada pela participação na coletiva, ficou lindo.

Abraço

Muadiê Maria disse...

Jana, adorei esse seu texto, tenho os 3 livros dele e o meu preferido é Lavoura Arcaica. Também me causou um forte impacto, Lavoura eu li duas vezes.
beijo

Tucha disse...

Gosto de Raduam, uma prosa sem enfeites mas com conteúdo. São grandes livros e geraram ótimos filmes.

Andreia Alves disse...

Olá Janaína,
Teu post ficou muito interessante, adorei!
Ainda não li nenhum dos livros, mas com certeza irei lê-los.
Parabéns pela bela participação, teu post ficou show!!!
Beijos querida e tenha uma ótima semana...

Abrantes disse...

Jana,
o texto de Ana Cecília foi publicado em seu blog: http://casulotemporario.blogspot.com/
Procure também naquela antologia que te mandei há poesias dela.
beijo
Martha

Cris disse...

Oi, Janaina querida,

Depois de ler teu post não se espera para ler Nassar.Ótima exposição de motivos.Parabéns.

Voltei, linda. "Solar", como vc definiu.

Beijão.

Fulvio Ribeiro disse...

Olá Minina não consegui postar nada ontem,mais esta lá. rsrsrs
Gostei daqui abraço.

Agulheta disse...

Olá Janaina! Deveras interesante o texto que partilha,,não conhecia confesso.
Agradeço a visita ao blog.Beijinhos.

Anônimo disse...

Sabe Janaína,

Ainda carrego a sensação de que ler [e compreender] é bem mais difícil do que escrever. Estou tentando melhorar nisso. Acredito que o segredo ainda está no hábito, sobretudo quando se refere a poesia.. ah poesia, como vc me desafia...

Quero indicar um livro de Domingos Pellegrini. Entre as suas obras destaca-se Terra Vermelha, que conta a história da colonização do Paraná. Conhece?

Ivan.

Luma Rosa disse...

Janaína, você bem pode trocar figurinhas com a Laura do blogue "Caminhar" - ela conhece "o cara", pessoalmente e se aproximou como fã mesmo, ficaram amigos e tals, veja - http://lauravive.blogspot.com/2005/08/raduan-nassar-e-lavoura-arcaica-o.html - conversa com ela e depois me conta! (rs*) - Beijus

Anônimo disse...

JANAÍNA,

Um microrreparo: no texto do Raduan,
"descrevendo movimentos" em lugar de
"descrevendo momentos".
Abraço do SIDNEY WANDERLEY

Anônimo disse...

Os dois textos são bonitos.
Geraldo de Majella

Laura_Diz disse...

Feliz quem conehce O Raduan- um presente da vida aquele homem.
Apareça qd quiser- ando sumida dos blogs, mt dor d ecabeça.
Tb já estive aqui, alguém me indicou vc... não foi Luma... não lembro.
Um abração,Laura-(Elianne Abreu-meu nome)
PS: quem viu "Um copo de cólera", o filme, não tem ideia do livro- mto melhor. "Lavoura arcaica", sim, é um bom filme- Raduan ajudou o LFCarvalho, viajaram juntos ao Líbano...

Ana Cecília disse...

Jana, gostei tanto do seu texto que, imediatamente, comprei pela internet os dois livros.
Só tinha visto o filme Lavoura Arcaica.
Obrigada!

Aninha Pontes disse...

Não conhecia. Mas seu texto deixou a todos com vontade de ler e conhecer.
Vou procurar.
Um beijinho e bom final de semana.

querência disse...

olá Janaína, o Raduan é de fato excelente escritor, lí o "Lavoura Arcaica" (ví o filme também)e alguns contos dele. Agora, o teu texto...! Escreves tão bem, resenhas de uma forma tão cristalina, que nos dá vontade de reler tudo novamente!
Parabéns pela postagem.
Abçs

cirandeira disse...

Que escolha excelente a que fizeste, Janaína. O Raduan Nassar afastou-se do ofício de escrever, para tristeza nossa. Mas, talvez ele tenha chegado à mesma conclusão que o mexicano Juan Rulfo, que também escreveu apenas dois livros e é considerado o mestre da literatura latino-americana.
Teu estilo de escrever também é muito bom. Sempre que venho por aqui encontro textos de excelente qualidade. Fico me perguntando quando será que teremos o prazer de ter um livro teu para ler!?
Em tempo: obrigada por ter feito um link lá no blog. Parece que passaste bem rápido, pq não me falaste nada...!
Beijos

Gerana Damulakis disse...

Excelente avaliação. Não há mais o que dizer, vc disse tudo. Vou guardar o texto. Ah, e é exatamente o que também penso.
Bjs.

Lunna disse...

Não li nenhuma das obras, mas já tomei nota aqui pra ir atrás dos dois. Não gosto muito de amanhã, então o farei hoje para não se perder. Grazie
Beijos

Denise disse...

Escrita perfeita e toda dor do mundo.
Vi o filme....não conheço o livro,mas com certeza isso ira mudar (rs) e vc é a "culpada".

sempre delicioso ler e aprendr com vc
minha gratidão e meu carinho

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