domingo, 27 de setembro de 2009

A menina e o menino (I)


Ele irrompe de repente em sua vida, sem a menina estar preparada, sem saber que seu mundo vai virar de ponta-cabeça.
Surge no alto de um navio de sonho chegado de muito longe, ela espremida no cais junto com os avós e o pai, mínima diante daquele navio estupendo. Ele, um pontinho lá no alto, junto dos pais, da irmã e dos passageiros do navio magnífico, acenando para a multidão que se agita embaixo. Pasma diante da cena extraordinária, a menina não consegue sequer fechar a boca. Finalmente, raciocina. Exibe então um risinho superior, puxa a mão do pai e segreda no seu ouvido: Você pensa que me engana, mas eu já entendi: este primo que veio do mar não existe de verdade. Ele é de história.

Muda rápido de opinião, assim que o menino escapole da mão do pai, desce correndo a rampa do navio, pendura-se no corrimão de corda, e pimba! salta bem na frente dela. O riso daquele menino é alto, é barulhento, vem de dentro, da sua barriga, sai rolando através de uns dentinhos separados na frente da boca e se espalha pelo mundo, seu peito está ofegante, e seus olhos brilham, brilham como o sol atrás dele. O menino é quase do seu tamanho, mas é mais forte que ela. Ele põe as mãos na cintura, finca as pernas abertas no chão e ri, triunfante. A menina não sabe direito o que fazer, sorri de volta sem graça, baixa os olhos. Ele então a segura pelos ombros e a sacode inteira, com força. Todo o cais do porto gira em volta da menina. Ela ainda está tentando entender o que lhe aconteceu quando o menino beija depressa a avó, corre para o navio, espreme-se contra a multidão, sobe e desce toda a rampa e reaparece na sua frente, vermelho, suado, despenteado, sempre rindo. Diante daquela força da natureza, a menina enfim compreende: Este primo é de verdade. Aquele menino não só é real, como é o ser mais real que já conheceu. Ela fareja imediatamente o perigo.

Convivem os dois no apartamento apinhado de gente, os que já ali viviam — a menina, os avós, eventualmente seu pai —, com os recém chegados: o tio, a tia, a prima bebê, o primo. E os empregados, antigos e novos. Ninguém se entende direito, o que um quer não é o que o outro quer, cada um em momento diferente da vida, todos tendo de adaptar-se à nova realidade. Os tios recém chegados do exílio buscam os fios de uma meada interrompida, os avós, em geral ternos, recolhem-se, ressentidos da invasão doméstica, o pai, que acaba de sofrer o terrível golpe da doença da mulher, parece deslocado... Em meio à barafunda, a menina e o menino. Ele, partido entre dois mundos, falando tcheco e português. Ela, apavorada diante das súbitas mudanças. Um de olho no outro.
Vai começar o embate entre os dois.

17 comentários:

Muadiê Maria disse...

texto lindo...Esta história é um livro! Vi até as ilustrações com as suas descrições.
beijo,
estou esperando o embate

Ana Cecília disse...

sim, também eu viajei, como no mais sensível romance, querendo o próximo capítulo.
ai, essa infância...

nydia bonetti disse...

Que delícia de texto Janaína. Cinematográfico: podemos ver as cenas. Quero mais! beijo.

querência disse...

É mesmo cinematográfico, como diz a Nydia... E essa menina séria e faceira... (?)
Texto gostoso de se ler. Dá mesmo pra visualizar todas as cenas e sentir o que vai dentro do coraçãozinho dessa
menina. A chegada desse navio vai dar um belo romance...! Aguardemos.
E eu que estava apenas passando, de repente tive que parar pra assistir
a chegada desse navio, que trará muitas surpresas. Tenho certeza!
Um bom domingo

cirandeira disse...

Oi Janaína, obrigada pelas visitas e por seus comentários, sempre generosos!
Parece, desconfio cá com meus botões, que que nesse navio vem ancorando, também, um belo romance! "Tô certa, ou tô errada"? rrrsss
Você escreve muito bem, o texto flui que é uma maravilha; é muito agradável de se ler!
Bj

Tim Marvim disse...

Olá, Janaína! Obrigado por retribuir a visita ao meu blog Memorial do bruxo. Fiquei muito feliz. Seja sempre bem-vinda. Abrçs

Thiago D'Martin Maia disse...

Ora, ora, Jana, que alegria "rever" você.
Fui seu colega no longínquo 2001, na Oficina do João Silvério Trevisan.
Só tenho seu email do Terra, que suponho não existir mais, já que minhas mensagens retornaram sempre.
Uma dessas foi pra contar que há algum tempo me mudei para Feira de Santana, estou mais pertinho.
Fiquei muito contente por achar seu blog (foi a partir do Todoprosa, do Sérgio Rodrigues).
Um abração.

Janaina Amado disse...

Amigos, muitíssimo obrigada pelas leituras e comentários de vocês. Vcs. não têm idéia do estímulo que eles representam para mim.
Thiago, eu me lembro de você! Não é aquele jovem que fazia mestrado em informática e produzia uns textos fantásticos? Virou baiano, é? Continua na literatura? Não tenho como lhe responder diretamente do jeito que vc. postou seu comentário. Mande-me um e-mail normal pro mesmo endereço do outro, que eu lhe respondo, tá?
Abraços a todos.

Unknown disse...

Oi, Jana, continuo na informática e na literatura, sim. E acho que já era baiano sem saber...
Vou escrever direito pra você em seguida.
Um abração.
Thiago

Anônimo disse...

Ai Jana, como esta Menina me emociona. E este Menino que évem chegando. Creio que seus leitores ainda teremos muita coisa boa boa, muito texto maravilhoso pela frente. E mais! Beijos de Maria

Giselly Lima disse...

Janaina, pra mim, por enquanto, Maceió significará mais trabalho que ócio. Mas, com certeza, aproveitarei as delícias da cidade, que amei de primeira.
Parabéns pelo belo conto.

Unknown disse...

Ai, Jana, faço minhas as palavras de maria: essa Menina me emociona demais!!! E pensar que eu tenho esse Menino, aqui do meu lado... e ele continua uma força da naatureza!!!
Gros bisou.

Anônimo disse...

continua que é verdade, queremos mais

dade amorim disse...

Janaína, você vai publicar um livro com essas suas histórias, não vai?
Não deixe de fazer isso, são muito boas de ler, você tem o dom da visualidade. Quem sabe acaba no cinema, o que seria uma delícia.

Beijo!

Obrigada pelos links, adorei ficar mais perto de você.

dade amorim disse...

Janaína, você vai publicar um livro com essas suas histórias, não vai?
Não deixe de fazer isso, são muito boas de ler, você tem o dom da visualidade. Quem sabe acaba no cinema, o que seria uma delícia.

Beijo!

Obrigada pelos links, adorei ficar mais perto de você.

Aninha Pontes disse...

Ah!
Que delícia de história.
Já estou aqui esperando e torcendo por um final feliz.
Temos mania de escrever a história dos outros. Ficar adivinhando e prevendo o que poderá acontecer.
Você é o máximi Jana.
Adoro seu jeito de escrever.
Um beijo querida.

claudio rodrigues disse...

"Este primo é de verdade". Este amor também. Lindo texto. Todo sentimento.

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