domingo, 23 de agosto de 2009

Terra molhada


Verdes campos de capim gordura, imensidões até onde a vista alcança. Borboletas, passarinhos. Silêncio (mas escondido atrás do abacateiro, de vez em quando o lobisomem uiva). Três ou quatro curiós e uma coruja tardia. Madrugada alta, primeiras raias de sol no horizonte Uma paz. Uma alegria. Sapo cururu na beira do rio. Sem-vergonhas espalhadas e margaridas silvestres. Urutau, o chora-lua. A brisa que ondula a relva movimenta como o mar, sereia. Preguiça, sinhô, uruaê batô! Terra sem mal. Que vontade de cantar. Terra molhada de chuva. Terra preta entranhada de água, oferecida espalha sua força, úbere do mundo: cocanha. Minhoca comeu a terra; pássaro preto, a minhoca; urubu não comeu nada – magro, espreita de longe a antevisão do futuro.

Nessa hora (o dia não nasceu, a noite não morreu), menino pequeno e pai passeiam sozinhos pelo campo. Mãe em casa, esquentando o leite. Menino segura a mão imensa do pai. Sabe já que os rudes calos dele são sua âncora — flechas que ensinam o tempo, estrelas-guia nos labirintos do mundo: rochedos. Facão do pai corta o mato denso. Desbastando o mato, pai cria o horizonte.

Menino adora goiaba branca. Pai cata goiaba, dá para o menino. Sossega, menino — tem mais bicho não, pai mordeu a fruta antes, cuspiu fora o bicho. Menino saboreia a goiaba branca com os olhos fechados, tenros carocinhos da polpa derretendo na língua, a boca doce.

De repente menino escorrega no barranco, mas a mão do pai o segura rápido, puxando-o firme pra cima. Menino mais branco do que a goiaba. Pai ri do menino, menino ri do riso do pai, cachoeira. Pai gosta de rir do mundo, satisfação do menino! Sob os pés a terra mole cede, cobrindo os pés do menino e do pai. Gostoso enterrar os pés ao mesmo tempo, mexendo bem os dedos na terra fofa encharcada, barro da vida. Delicioso mergulho de pés, tornozelos, pernas até o fundo incerto da Terra, lá onde coabitam o terror com os mais secretos desejos. Segura caminhada que pai guia em meio aos matos do mundo.

O cheiro da terra molhada ganha o capim, o ar, as folhas das árvores tortas, impregnando para sempre cada poro do menino pequeno, que dele jamais se esquecerá. A este cheiro retornará sempre que a vida lhe for muito dura, faltarem-lhe força, coragem ou consolo ou, simplesmente, sempre que, distraído, baixar o vidro do carro em movimento após alguma chuva, e o mundo da infância entrar-lhe pelas narinas.

Janaína Amado
*Imagem daqui

19 comentários:

cirandeira disse...

Estive aqui, nessa terra molhada, rodeada de verde, de pássaros, de cantos, entre o pai e o filho. Escondida,me esgueirando, deslumbrada e cheia de encantamentos! Deu-me uma vontade danada de permanecer em algum cantinho desse lugar.Acho que cheguei a perder-me nessa viagem tão maravilhosa! Entendí muito bem o porquê de "viajar é perder-se" !
Gostei muito.
Até breve...

Chá das Cinco disse...

Que leitura agradavel!
Adorei, mai uma vez no teu blog para te parabenizar.

Amélia disse...

Gostei de ler e de sentir, com o texto, o cheiro a terra molhada - que na cidade raramente se pode ter...

KImdaMagna disse...

...sua escrita tão "terra a terra" me colocou por momentos em Angola.

Capim e cheiro de terra molhada, que bom!!

xaxuaxo

João de Sousa Teixeira disse...

A propósito da nossa conversa e de outras coisas:
NÔ PINTCHA

A missão obrigava-nos a vestir de uma só cor e a ter um só pensamento: exigir para cumprir. Ou seja, deveríamos não só cumprir a missão como exigir que os outros procedessem do mesmo modo. Realmente, este nosso objectivo só seria conhecido no regresso. Nenhum estandarte ou crachá daria conta do desígnio proposto, tanto mais que o nosso destino era Timor e não passamos da ilha de S. Tiago, em Cabo Verde. Melhor para nós. Seria esta uma guerra com ar condicionado: um destino de férias, apesar do batuco, mornas e coladêras não nos dizerem, à chegada, muito mais que folclore, a compensar quem passou a adolescência com pesadelos de balas e estilhaços.
À semelhança do provérbio crioulo: cima grilo baixo pedra: calca protcha, frouxa boa, com o qual, milicianos, haveríamos de conviver, tínhamos a alma entregue ao criador. Quer dizer, estando nós na mó de baixo, sujeitavamo-nos como o grilo debaixo da pedra: se calcassem seriamos esmagados, se descuidassem voaríamos.
O que menos precisávamos eram aquelas botas todo-o-terreno, o camuflado e a inevitável G3, estimada companhia para coisa nenhuma, até que as balas lhe apodrecessem na culatra.
(...)
Para já tínhamos o batuco. O ritmo imprimido pelo grogue e a vertigem provocada pelo bambolear das kadêras das mininas. Água de chuva é que não.
Só ao fim da tarde parecia viver gente nas Achadas. Enchiam-se de correrias de crianças, de intermináveis ladainhas em crioulo, do bater intermitente do pilão, esmagando o milho, e nuvens de poeira. Sempre o pó. O pó no ar, nas casas, na roupa e na garganta. Mas nesta seria limpo, não tardaria, por uma catchupa pobre, feita com muito engenho e pouca carne. Dos restos se encarregariam os corvos e as cabras, se houvesse restos.
Algumas ilhas têm nomes de santos. Sobram para outras nomes austeros: Maio, Brava, Fogo, Boavista e Sal. As vilas e cidades seguem-lhes o rasto. O Tarrafal, exemplo de dor e de vergonha, era o lugar de Chão Bom.
Aos poucos fomos mudando a indumentária para coisas mais leves e amistosas, soletrando alguns vocábulos em crioulo, apertando as mãos ( e quanto tempo demora um cumprimento...) que a amizade foi trazendo ao nosso encontro.
As novidades, ou o pouco pano que delas sobra, chegam de barco a S. Vicente, de avião a S. Tiago, quase nunca à Alfândega dos Espargos, na ilha do Sal, e, quando já não são novidade alguma, às restantes ilhas.
- Mantenha. – Diz-se, nas boas vindas, com a morabeza de sempre.
Os aparelhos de ondas curtas são obsoletos. Não há notícias que prestem.
Outras ondas são límpidas. São azuis e verdes e espraiam-se devagarinho, beijando cada grão de areia por onde passam. À tarde o mar é azul e negro, mas o fundo é cristalino, apesar dos traços vermelhos que o sol desenha até onde se esconde.
Nhô Lima deu à costa da Praia com o bote carregado de peixe sem nome e algumas lagostas, que as mulheres se encarregaram de recolher e dar melhor destino ao que não foi vendido logo ali.
- Levem p’ra Santa Catarina, aí os tugas compram tudo. – Aconselhou Nhô Lima.
E voltou ao mar para aproveitar a generosidade das águas e a feição dos ventos.
Mar é o que mais há. Depois da seca, depois do vento, depois do pó, depois da terra vermelha e dos frutos minguados. Depois de tudo há o mar, o mar longe, o Mar de Pasárgada – o mar de S. Tomé – o mar de partir e de chegar, o mar Atlântico com o mundo do outro lado.
A 30 de Dezembro de 1974 choveu na Praia. Provavelmente em toda a ilha de S. Tiago, em todas com nome de santo e até nas restantes, com nomes austeros.
5 de Julho de 1975: de novo o Sol, agora em sentido figurado.
Já não era sem tempo.

João Teixeira

nydia bonetti disse...

os cheiros da infância são mesmo inesquecíveis. eu me lembro do cheiro do mingau de chocolate e do guardanapo que embrulhava o lanche no "grupo". e o cheiro de queijo derretido na chapa me lembra o fogão de lenha e a nonna sempre em volta. e a terra, e as chuvas... doçuras... que texto, janaína! beijos.

Ana Tapadas disse...

Como eu adoro a tropicalidade da tua escrita!
beijo

Ana Cecília disse...

Que delícia de texto, Jana!
Pura cor de infância.
viajei junto.
abraço,
Ana Cecília

Aninha Pontes disse...

Só quem já sentiu o cheiro da terra molhada, comeu goiaba branca, com medo dos bichinhos, sabe doq ue vc fala. Consegue até sentir a mão forte do pai.
Lindo texto.
Beijos meu bem.

Muadiê Maria disse...

Jana,
vamos nos conhecer dia 1º!
beijo,
Martha

- Luli Facciolla - disse...

Ué... Você descreveu meu local de trabalho?! hehehehe...

Amei o texto!

Beijos

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Janaina, você nem imagina o quanto eu gosto do cheiro da terra molhada; do qto comi goiaba, mas as minhas preferidas sao as vermelhas e essas têm mais bichos que as brancas; ou será por causa da cor logo se vê os pontinhos brancos se mexendo, ahahahaha! Eca!

Eu nao tive a mao forte do meu pai, mas tive a do meu padrasto; que foi forte em me sustentar; em dar amor e carinho; essas sao as maos do meu pai que conheco...

Um lindo texto como sempre.

Bjus

Aninha Pontes disse...

Janaína, vim lhe desejar uma boa semana.
Um beijo

pica pau disse...

parabens pelo blog,ele esta muito bom de se lê.

Senhorita B. disse...

Jana,
Vc terá uma "surpresinha" no dia 1.
Não será desta vez que iremos nos abraçar, mas não faltarão oportunidades.
Bjs

Anônimo disse...

Confidence, perseverance, courage, all three in place, then the world is not impossible to do things.
http://www.104woo.com.tw
www.104woo.com.tw/index.htm
www.kinghouse.cc
www.kinghouse.cc/house.php

Anônimo disse...

On the ground planted vegetables, it is unlikely that long grass; the hearts of the good, it is unlikely that health evil.

www.gayoyoga.com.tw
www.gayoyoga.com.tw/teacher.html
www.gayoyoga.com.tw/time.html
www.sunny-yoga.net
www.sunny-yoga.net/news/news001.php?userid=6&page=1
www.sunny-yoga.net/aboutus/aboutus.php

Sur le terrain planté de légumes, il est peu probable que l'herbe longue, le cœur du bien, il est peu probable que le mal de la santé.

Auf dem Boden gepflanzt Gemüse, ist es unwahrscheinlich, dass die hohen Gras, die Herzen der gut ist, ist es unwahrscheinlich, dass die Gesundheit das Böse.

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

tanta poesia nesta tua prosa

dade amorim disse...

Meu Deus, que viagem gostosa!
Bom demais vir aqui, sempre um texto muito bom, sempre uma prosa tecida com poesia.
Parabéns pelo aniversário! Valeu esse ano. Estamos torcendo por uma vida muito longa para o blog.

Beijo grande, viu?

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