sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Diálogos (im)possíveis

(Foto: Quilombo onde Dandara nasceu, na Serra da Barriga, vendo-se a árvore sagrada de Onan)

[Os jovens Pedro Lobisomem (P) e Dandara (D) se amam, mas estão há quilômetros de distância um do outro. Uma co­ruja registra o que Pe­dro Lo­bi­so­mem pen­sa, e uma cri­sá­li­da, o que Dan­da­ra ima­gi­na. Re­sul­ta desse imbroglio todo este diá­lo­go estranho, frag­mentado, aqui fiel­men­te re­gis­tra­do:]

P - Já bati tanta perna por esse mundão de Deus, co­nhe­ci tanta mu­lher! Nenhuma, Dandara, como você. Será, amor, que pen­sa em mim?
D - Eufrásia gorda diz que eu não conheço o mundo. Ela tá cer­ta, nun­ca saí daqui...
P - Eu também. Sabe como é o meu amor?
D - Tenho vontade de saber. Como é, meu bem, o mar? Eu nunca vi!
P - Tão grande! Tem dias em que penso: o meu amor é maior que as estrelas...
D - Maior do que a lua?
P - Maior!
D - Maior do que o sol?
P - Ih, maior!
D - Maior do que o céu?
P - Muito maior!
D - Maior do que Oxum?
P - !!
D - Mas o mar não pode ser maior que Iemanjá! No mar tem peixe, tem barco, tem onda...
P - ...nosso amor tem horizonte, gaivota, cotovia...
P - Tem dias, Dandara, em que acordo tris­te, pes­si­mis­ta, pen­san­do: essa nossa separação tem gos­to de sal, ela pode não ter fim. Eu que­ria tan­to, Danda­ra, conhecer o seu quilombo!
D - Pois meu pai veio da África, ele ainda se lembra...
P - Lembra a África?
D - .. lembra que o mar tem gosto de sal e não tem fim.
D - Às vezes, Pedro, eu penso: será o seu amor por mim como é o mar, sem fim?
P - Em Iagos costumam comparar o quilombo ao lobisomem. Di­zem que os dois não se acabam. Nunca morrem, não têm fim.
D - Será o lobisomem que nem o meu amor: sem fim?
P - Que nem o meu amor!

[Do meu romance Dandara. S.Paulo, Ed. Maltese, 1995. Regras de reprodução do texto acima: Creative Commons]

9 comentários:

valter ferraz disse...

Janaína,
diálogo impossível, mas imaginável. Amores inimagináveis, porém possíveis.
Aliás, qual amor é impossível?
Interessante: hoje, mais uma vez eu falo eu desamor, por lá. Esse será impossível?
Beijo, menina

Aninha Pontes disse...

Tudo tão real.
O sentimento é único. O mesmo.
Mas porque será, que homem e mulher nem sempre falam a mesma língua?
Um diálogo atravessado, as vezes com tantas controvérsias.
Louco isso, louca é a vida.
Beijos meu bem.

Anônimo disse...

Fui lendo e pensando no seu livro... gosto tanto! Um dia desses releio!

Edu O. disse...

Vivo um amor de distância. Gostei tanto do diálogo!!!

Anônimo disse...

Janaina, o amor da distância existe, porque é renovado a cada reencontro.
Um beijo. Ótimo final de semana.

Janaina Amado disse...

Pois é, a idéia aqui foi a de um diálogo aparentemente impossível, diálogo entre amantes separados pela distância e por vários outros obstáculos, e no entanto possível, graças exatamente ao amor e intensa concentração de um amante no outro.

Muadiê Maria disse...

muito bonito...

Nadya disse...

Oi Janaína,
Gostei muito do diálogo, principalmente desse sentimento que voce consegue mostrar, de amor e envolvimento mutuo. Um dia vivi esse sentimento e foi maravilhoso.
Mas o melhor de tudo além de sentir e ser capaz de PERCEBER o que se sente e SABOREAR o que se percebe.

Nina Araújo disse...

Que grata surpresa encontrar-te tão afeita às letras!
Adorei tua visita no Imaginosa Poesia e ,principalmente, adorei ter descoberto este teu talento!
Abraços,Nina.
Voltarei sempre!

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