sexta-feira, 30 de abril de 2010

Uma paixão



Indiferentes ao mundo em volta, interessados apenas em amar, Dandara e Pedro Lobisomem sequer notaram a presença do anjo e de Ananias Bom Conselho no Boqueirão. Enquanto Ananias matutava e o anjo suspirava, os dois corriam feli-zes pelo alto da mata, nus e de mãos dadas, em direção a uma gruta. Tentavam proteger-se da tempestade que há pouco desabara. Estranha tempestade! Começara mansinha, porém, de repente, sem que se soubesse como ou porque, pareceu o dilúvio. Tingiu os céus de vermelho, armou roncos, raios e trovões, essas zangas da natureza, inundou baixadas e rios, encharcou encostas e acabou expulsando para os abrigos, fossem eles tocas, cavernas, cascas, ninhos ou ocos de árvore, todos os habitantes da mata, inclusive Dandara e Pedro.

Os dois conheciam-se há apenas vinte e quatro horas. Vinte e quatro horas, um dia. Mas pareciam vinte e quatro meses! Ou vinte e quatro anos. Quem sabe não seriam vinte e quatro séculos? Pois quais calendários, afinal, medem vivências? Quais as medidas do amor? Aleluias, tartarugas, dinossauros e orquídeas, geleiras e borboletas, sociedades e rochas, guerras, rotinas e festas, quais relógios são capazes de medir as suas diferenças? O tempo da celebração é o mesmo do desespero? Com quantos, com quais minutos se constrói, enfim, uma paixão?

Filosofias à parte, o fato é que, vinte e quatro horas após se conhecerem, Pedro Lobisomem e Dandara se sentiam íntimos. Haviam esquadrinhado cada pedacinho de seus corpos, dos mil e um jeitos que ele aprendera na vida devassa pelo mundo, e agora, com engenho e arte, agora ensinava a ela. Jeitos que ela imaginara em fantasias, sob estrelas, durante as noites no Quibano, e com ele agora compartia. Pedro admirava a facilidade com que, inteiramente à vontade, como se não houvesse feito outra coisa na vida! ela compreendia os jogos do amor e ainda inventava outras brincadeiras, inovações que o deixavam enlouquecido de prazer.

[Início do terceiro capítulo de meu romance Dandara (S.Paulo: Ed. Maltese, 1995), que estou revisando e transformando em novela. O capítulo é dedicado ao amor entre a jovem quilombola Dandara e o também jovem minerador Pedro,  conhecido como "Pedro Lobisomem", por razões aqui mantidas obscuras.]

6 comentários:

Ana Tapadas disse...

Obrigada Janaína por me permitir ler este excerto! Bela construção narrativa, forte e bela temática.
Beijo

Denise disse...

construindo uma historia envolvente
grata pela generosidade

carinho

Celso Ramos disse...

Olá Professora!!
A narrativa que li em muito me lembra a primeira história da humanidade...depois da queda é claro!!! É isso que faz com que as histáris não morram nunca..se perpetuem!!!
Abraços!!!

querência disse...

Muito bom, Janaína. Fui pega pelos sentidos logo de início...Fico imaginando como ficará essa novela...! Parabéns e obrigada por nos mostrar assim, ainda em fase de revisão.

Um bom feriado

Fernando Campanella disse...

Ótima escrita, Janaína, bem fluida e interessante. Desejo a você muito sucesso com a novela.
Quanto ao meu poema na mais recente postagem em meu blog eu o escrevi em 1991, já não escrevo mais daquele jeito, acredito. Foi uma catarse, sinto que com a vivência meus poemas tornaram-se mais leves. O poema estava na 'gaveta', decidi postá-lo pois faz parte ,importante, de minha trajetória poética. Espero que você encontre um sentido, ou uma razão, ou uma certa beleza, nele.
Grande abraço.

dade amorim disse...

O romance ou novela promete, Janaína. Imperdível, quero ler!

Beijo pra você e uma semana das melhores.

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