segunda-feira, 1 de março de 2010

José Mindlin: “Eu não faço nada sem alegria”



José Mindlin nos deixou. Absolutamente apaixonado por livros e por tudo o que dissesse respeito a eles, Mindlin, ao longo de 80 anos – desde os 15 de idade, pois faleceu em 28/02/10, aos 95 –, formou sua magnífica, extraordinária biblioteca de mais de 17.000 títulos e 40.000 volumes, entre os quais obras e edições raríssimas no Brasil, principalmente da história e literatura. Lá estão, entre muitos outros, o primeiro livro editado em nosso país, a primeira edição e manuscritos de importantes livros, além de documentos históricos do mais alto valor. A biblioteca sempre foi aberta aos pesquisadores interessados.


Advogado e jornalista na juventude, em 1950 Mindlin fundou a Metal Leve, tornando-se durante décadas um industrial brasileiro de ponta, com todos os desafios que isso significava e significa. Paralelamente a esse trabalho, continuou lendo, formando sua biblioteca ao lado da mulher, Guita, também apaixonada por livros, e participando das diversas instituições e iniciativas ligadas à cultura, como o MASP, a USP, a FAPESP, o CNPq... a lista é imensa. Em 2006, em meio ao reconhecimento geral e às muitas homenagens que recebeu, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Dizia-se leitor, não escritor, mas escreveu dois importantes e deliciosos livros: Uma Vida entre Livros – Reencontros com o tempo e Memórias Esparsas de uma Biblioteca. Em 1998, lançou o CD O Prazer da Poesia, em que reuniu e leu os poemas de que mais gostava. Mindlin realmente acreditou na cultura, por ela trilhou sua vida, por ela travou suas batalhas, esse homem pacífico. O mais importante: fazia tudo isso com entusiasmo, com alegria, doando-se integralmente. Não por acaso no seu ex-libris – vinheta que bibliófilos colam na contracapa de seus livros – , estava escrita esta frase de Montaigne, na ortografia francesa do século XVI: Je ne fay rien sans gayeté, Não faço nada sem alegria.


Tive o prazer e a honra de conhecer José Mindlin. Recebeu-me há alguns anos em sua casa no Brooklin, SP, com a maior gentileza, ao lado de Guita, a companheira querida de décadas (falecida em 2006), que, para ajudar o marido, aprendera a arte da encadernação. O casal foi extremamente amável comigo – não me refiro só a etiqueta, a bons modos, mas àquela amabilidade que sai do coração e nos chega quente, aconchegante, vinda de gente culta mas sem pedantismo algum, gente alegre, informal, sobretudo humana, que aproveitou a experiência da vida e a cultura para tornar-se ainda melhor como gente.


Passei horas extremamente agradáveis com o casal. Mindlin falava muito, sorria, mostrava quadros e livros, trazia à conversa informações e anedotas de uma estonteante variedade de fontes. Guita, mais contida, sorriso leve, no momento certo pronunciava aquela frase que faltava, acrescentava o bom senso em que nenhum de nós dois havia até então pensado. Nessa tarde, visitei a famosa biblioteca (para mim, espécie de templo), situada nos fundos do terreno da residência do casal – bastava alguns passos para que a alcançassem –, aprendi muito e me diverti, perdida de reconhecimento, admiração e carinho pelo casal. Voltei à casa algumas vezes: entre os poetas preferidos de Mindlin estava minha mãe, Jacinta Passos, cujo poema “Cantiga das mães” – um dos favoritos também de Guita - ele incluíra no seu Cd de poesia. Conversamos a respeito do livro que eu organizava, sobre minha mãe. Ele não só deu sugestões como, no ano passado, mesmo recém saído de uma internação de um mês no hospital, o que o enfraquecera muito, escreveu um texto simples e absolutamente pessoal sobre a poesia de Jacinta Passos. Este texto abrirá o livro dela, que sairá publicado este ano. Sou profundamente grata a Mindlin e à sua filha Betty por este gesto, e por tudo o que José e Guita fizeram pela cultura e educação no Brasil. São exemplos.


Como o casal queria que os tesouros de sua biblioteca alcançassem o maior número possível de pessoas, doaram a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin à Universidade de São Paulo, que a está agora digitalizando. A beleza e relevância desse acervo, assim como o ótimo trabalho que está sendo realizado com ele, pode ser conferido neste site.

PS: Sobre o importante assunto tratado no blog anterior - plágio em tradução, e processo da Landmark contra Denise Bottmann -, está circulando na internet um manifesto de apoio à tradutora, assinado por gente de muita expressão na área. Para obter mais informações sobre o assunto e o texto do manifesto, entre aqui.

8 comentários:

valter ferraz disse...

Janaína,
conhecí José Mindlin pessoalmente. Quando trabalhava como técnico em ar condicionado prestava serviço à Metal Leve. Por esse motivo fui encarregado de cuidar do ar condicionado da residência. Ele dizia que pouco usava mas era importante por causa dos livros. Extremamente afável inclusive com os serviçais que como eu faziam parte da ala doméstica. Disse-me o motorista particular dele que era assim com todos, perguntava como ia a família, saúde dos filhos, etc. Inclusive, fazia absoluta questão de saber do andamento dos estudos, etc. Pagava através da empresa ou da fundação estudo até a faculdade para todos. Uma pessoa notável.
Beijo, menina

ps: acho que respondí seu comentário no post de hoje no Perplexo.

Lisarda disse...

Janaína, notável e sentido testemunho, é emocionante conhecer vidas plenas que prolongan as nossas.Un abrazo,Lisarda.

cirandeira disse...

Uma grande perda, realmente. Um dos raros empresários pensantes; além de muito culto, um ser humano muito generoso.
Já acessei algumas vezes o site da USP que contém as obras doadas por ele. És uma privilegiada por tê-los conhecido. O casaal era muito unido. Agora ele foi "encontrar-se"
com ela, pois dizia sentir muito a sua falta.
Um abraço

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Gostei dos seu poste. Sempre muita humanidade... É importante fazer as coisas (qualquer que ela seja) com alegria...
Kandandu (sem maiungo)....

Anônimo disse...

Uma perda enorme para o país. Conheci um pouco mais sobre José Mindlin aqui. Obrigada pela postagem.
Annelise, de SP

nydia bonetti disse...

Janaína, você me emocionou agora. "Eu não faço nada sem alegria" - só mais uma das lições de Mindlin. Que coisa boa tê-lo na abertura do livro de Jacinta Passos. Beijo, querida.

Mi Müller disse...

Janaína, que belo post, uma bela homenagem a este homem que sempre foi gigante em sua generosidade!

estrelinhas coloridas...

João Renato disse...

Olá, Janaina,

Eu aprendi com ele o que li numa entrevista que assisti há muito tempo na televisão. Nela, ele dizia que não aceitava a desculpa da falta de tempo para não se ler, porque ele sempre fora um homem muito ocupado. Mas que tinha sempre com um livro na mão, e que a sua leitura era a soma dos pequenos períodos vagos.
Daí, passei a andar sempre com um livro na mão, e vi que a questão da leitura não é de falta de tempo, mas de administrar as nossas prioridades para o tempo vago.
Foi uma vida bonita; deixou sua marca.
Abraço,
JR.

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