sábado, 5 de setembro de 2009

A menina e a contadora de histórias


Adora escutar histórias. Desde pequena, ouvidos bem atentos, corre a casa em busca de um sinal, mesmo leve, de que alguma história está sendo contada ou vai ser contada logo. Uma frase, um sorriso convidativo de um adulto, um "Era uma vez" e a menina já sai correndo toda feliz para junto de quem fala, senta-se no chão, tão atenta que seu peitinho magro nem respira direito, e fica ouvindo, ouvindo, ouvindo… Interrompe, também: No fim ela vai se salvar? Conta outra vez! Mas por que ele fez isso? Conta de novo! Esse Malasartes é sabido mesmo! E a menina cai na gargalhada, uma de suas raras gargalhadas, à mostra o brilho dos dentes miudinhos: encantamento do mundo.

Tem sorte, esta menina, pois na sua família muita gente adora inventar histórias, tem até quem vive de inventar histórias! Família de cabeça nas nuvens. A menina adora: aquele povo todo contando uma história atrás da outra, se divertindo, parece até que disputam quem inventa mais, e ela ali no meio ouvindo, sentada no chão ou deitada de bruços, pernas para cima, pezinhos balançando… pode passar a vida inteira assim, feliz no mundo das histórias.

Cada um tem um jeito diferente de contar. Às vezes, se confunde: Verdade ou mentira? O pai diz que ela nasceu de um rabo de bode. Rabo de bode? “É, um rabo de bode destamanhão que encontrei no chão. Achei bonito, levei pra casa, tratei dele… e ele virou você.” O tio se diverte com seu nome: “Sabe que Janaína é a rainha do mar? Tudo o que existe no mar, todas as plantas, todos os barcos, todos os animais obedecem a você." A menina está extasiada com o poder recém descoberto: Tubarão também me obedece? Já as histórias da mãe são povoadas de bichos, sono, colo, princesas, reis africanos, provêm de tempos imemoriais, a tataravó contou pra bisavó que contou pra avó que contou pra mãe dela que agora conta pra ela: “Su su su / neném mandu/ quem dorme na lagoa/ é sapo cururu”.
Mas a grande contadora de histórias da família é sem dúvida a tia. Ao contar uma história ninguém revira os olhos como ela, ninguém faz gestos tão variados — abre os braços, pula no meio da sala, corre pra debaixo da mesa, finge que chora —, ninguém possui tanta noção de ritmo, do momento certo de pausar, apressar, diminuir ou retomar a narrativa, ninguém canta assim no meio de uma história, ninguém como ela conhece as entonações de voz para os diversos personagens e para os momentos mais dramáticos da trama: “E então a princesa que dormia há cem anos abre os olhos, dá umas piscadinhas por causa da luz (pisca os olhos), e… (pausa dramática)… e… e diz assim (nova pausa; a tia passa os olhos pela audiência): E diz assim (voz trêmula e alta, expressão estremunhada) – Onde estou? Que mundo é este?” As histórias da tia não são apenas contadas, são também representadas.
A menina adora, ela e os primos criam até uma bolsa de valores de histórias: História da tia vale três pontos. História dos outros, um ponto. E se uma história dos outros for muito boa? Um ponto e meio! Mas sem dúvida a história preferida, a grande campeã entre as campeãs, a mais pedida e a mais ouvida das contadas pela tia — Vamos dar quatro pontos pra esta? — é A Coruja e o Gavião.


Mãe extremosíssima, a coruja cuida com amor e desvelo dos seus filhotes, que acha lindos: “A coruja, coitadinha/ Bem sabe que não é bela / Mas não crê que seus filhotes / Se pareçam com ela.” Uma grande ameaça, porém, paira sobre a coruja e sobre as outras mães da floresta: um gavião terrível invade os ninhos e come os filhotes (a menina mal pode acreditar que existam seres assim tão malvados no mundo). Muito aflita, mamãe coruja resolve procurar o gavião. Em desespero, pede-lhe pelo amor de Deus que não coma os seus filhotes, únicos bens da sua vida, suas únicas riquezas (a menina e os primos desfrutam o momento, sentindo-se importantes). O gavião, que no fundo não era mau sujeito, apenas faminto, sente pena da coruja, e termina por concordar em não lhe devorar os filhos. “Mas como vou reconhecer os seus filhotes?”, pergunta. A coruja não tem dúvidas: “Eles são os mais bonitos / da floresta inteira!” Bem intencionado, naquele dia o gavião devora os filhotes mais feios da floresta. Ao encontrar o ninho vazio, a coruja entende o que aconteceu e, em desespero, voa até o gavião, gritando-lhe revoltada: “Ó gavião traidor / Ó traidor!”



A esta altura, a tia já está de pé, fazendo-se ora de gavião, ora de coruja, expressando toda a dramaticidade da cena. Em meio a fortes, contraditórias emoções, em prantos a menina abraça a tia — ao fazê-lo, está abraçando todos os grandes contadores de história do mundo. A menina não quer abandonar aquele mundo inventado, pede: Conta mais uma?

21 comentários:

clarice ge disse...

Por favor, conta mais...
Adoro isso, este dom, a voz que nos leva para um mundo inventado tão real. Adoro esta palavra tão 'bem dita', que me faz querer mais.
Janaína, tu és um presente!

Paloma disse...

Janinha, minha irmã, como diria nossa Maria Maricota Mirabeaulina, estou aqui me acabando de chorar. Que lindo texto, que lembrança maravilhosa de mamãe. Ando muito sensível a ela, e ainda mais fiquei lendo a história, lembrando de sua voz imitando a coruja...
Amo você. Beijos da sua Palé

Gerana disse...

E você, sem fugir ao que já é tradição familiar, também conta uma história com talento e sabor.
Maravilha!

nydia bonetti disse...

Em casa, o contador de histórias era meu avô e depois meu pai. Todas muito bem humoradas e inacreditáveis, que eles juravam que era tudo verdade. :)). Fomos meninas de muita sorte, Janaína... Que delícia te ler. Beijo.

Unknown disse...

Jana, tive a felicidade de também ser ouvinte de Zélia. Maravilhosas histórias, as de conto e as de mesmo!

Anônimo disse...

Achei ótimo o texto. Achei fantástico imaginar o cenário de contadores de histórias. Mas, vou acrescentar algo que também pensei. A voz. Contar histórias tem muito, mas muito mesmo a ver com a história em sim. Mas, tem mais, muito mais a ver com a voz. As vezes ouço uma voz e ela me faz sentir vontade de ouvir histórias. Será que não poderíamos criar um serviço de voz especificamente para isso? Algo a se pensar...
:-)

Ah, fiquei feliz que tenha modelado os legumes em bichinhos... sempre funciona! ;-)

Anônimo disse...

Olha só que coisa legal! São 12:37 de domingo e passando pelos canais de TV dei uma parada no Paraná Educativa. Bem aqui na frente está Ziraldo e Joana Medeiros contando histórias para crianças... que grande barato! rssss

Luma Rosa disse...

Menina Janaína, a sua tia era uma atriz!! E você deve ter herdado o dom pois se expressa muito bem! Bom feriado! Beijus

Ana Tapadas disse...

Que bom ter uma mana para partilhar a velha emoção!Que ternura de post!
beijinho

aeronauta disse...

Post histórico! Muito lindo!

traposcoloridos disse...

Jana: quanta saudades das histórias de minha vó... na minha infância as campeãs eram a história do disco (que depois entrou no Anarquistas) e a de Miguelinho de Doralice.
Não tinha pra ninguém, né? D. Zélia é imbatível. O coração fica apertadinho com as saudades.
Beijão com gosto de rataouille

cirandeira disse...

Oi Janaína, que bom receber vc "lá em casa" ! Havia passado por aqui e
não tinha ainda essa "contadora de histórias". Fui uma menina que gostava muito de ouvir estórias e ficava fascinada! Inclusive com essa do gavião...Pelo jeito não era só a tia que contava estórias
tão bem; a menina que as escutava também tem um talento especialíssimo para contá-las. Parabéns mesmo! É tão bom viajar pela fantasia!
Quero aproveitar a oportunidade pra pedir-te permissão para fazer uma postagem sobre Jacinta Passos, tua mãe.Sei que estás em vias de publicar um livro sobre ela, mas gostaria de publicar um de seus poemas, que conseguí através da Internet.Gostaria de saber também, se posso usar a foto dela que publicaste em teu blog.
Gosto muito de vir por aqui. Sempre
tem algo que me transporta para outras esferas imaginárias, mágicas!
Aguardarei tua resposta
Bjs e um ótimo feriado
P.S.:esse "zip de segurança" foi autorizado por ti? Gostaria de saber, até por uma questão de segurança, pq existem tantos mal intencionados, que a gente nunca sabe.Fico muito cismada quando pedem minha senha.Não costumo dar...

Chá das Cinco disse...

Que texto lindo!
O lúdico mexe também com os adultos e você tem o dom de contar contos,parabéns minha flôr.
Obrigada por comentar, a beleza é isso, a beleza é também fazer alguém sonhar.
Bjs de Gê

Aninha Pontes disse...

Jana, a Clarice tem razão.
Conta mais...
Delícia de escrita, porque você agora é a tia querida, que conta histórias como ninguém.
Me sentía própria menina, deitada no chão, com as pernas dobradas e o pés no ar, e voei longe.
Beijos querida.

Anônimo disse...

Janaína,
deixo meu exilio prá comentar com voce. Entendeu por que parei de escrever? Só quem tem essa paixão pelas palavras pode encantar.
Beijo, menina

Palatus disse...

"Era uma vez" e nunca mais de novo do mesmo jeito...adoro vir aqui ler...e passo horas, não deixo marcas, sinto-me envergonhado, mas hoje não teve outra: marquei-me todo. Bjo e volterei...
Nilson

cirandeira disse...

Oi Janaína, o tal "zip de segurança" (?) é, seguramente, coisa de vândalo querendo pegar a senha das pessoas pra destroçar tudo! Como diz o ditado: "o seguro morreu de velho, desconfiado ainda
hoje vive"! A gente precisa ficar
bem atenta pra essas pegadinhas!
Obrigada pelo link
Bjs

ADRIANO NUNES disse...

Caríssima Janaína,


Isso mesmo a todo o tempo! Linda postagem!


Grande abraço,
A. Nunes.

Muadiê Maria disse...

Jana, lindo relato, emocionante, para ser lido e relido. A foto é demais! Zélia sempre foi linda, né?
beijo

Tiago Buckowsky Xavier disse...

Quando eu morava em Londrina, no Paraná, fui ao teatro ver o autor Domingos Pelegrini. Já havia lido muitas de suas histórias, mas vê-lo ao palco, sem cenário e com seu figurino do dia a dia, apenas ele e uma cadeira, contando as histórias que eu já havia lido nos seus livros, foi uma das experiências mais emocionantes da minha vida. Belo seu texto, que demonstra que contar uma história, seja de forma escrita ou falada, exige talento e dedicação. Adorei o blog, voltarei sempre, em busca destas histórias.

Ana Cecília disse...

Jana, que texto encantador e comovente. Obrigada!

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