
Ele irrompe de repente em sua vida, sem a menina estar preparada, sem saber que seu mundo vai virar de ponta-cabeça.
Surge no alto de um navio de sonho chegado de muito longe, ela espremida no cais junto com os avós e o pai, mínima diante daquele navio estupendo. Ele, um pontinho lá no alto, junto dos pais, da irmã e dos passageiros do navio magnífico, acenando para a multidão que se agita embaixo. Pasma diante da cena extraordinária, a menina não consegue sequer fechar a boca. Finalmente, raciocina. Exibe então um risinho superior, puxa a mão do pai e segreda no seu ouvido: Você pensa que me engana, mas eu já entendi: este primo que veio do mar não existe de verdade. Ele é de história.
Muda rápido de opinião, assim que o menino escapole da mão do pai, desce correndo a rampa do navio, pendura-se no corrimão de corda, e pimba! salta bem na frente dela. O riso daquele menino é alto, é barulhento, vem de dentro, da sua barriga, sai rolando através de uns dentinhos separados na frente da boca e se espalha pelo mundo, seu peito está ofegante, e seus olhos brilham, brilham como o sol atrás dele. O menino é quase do seu tamanho, mas é mais forte que ela. Ele põe as mãos na cintura, finca as pernas abertas no chão e ri, triunfante. A menina não sabe direito o que fazer, sorri de volta sem graça, baixa os olhos. Ele então a segura pelos ombros e a sacode inteira, com força. Todo o cais do porto gira em volta da menina. Ela ainda está tentando entender o que lhe aconteceu quando o menino beija depressa a avó, corre para o navio, espreme-se contra a multidão, sobe e desce toda a rampa e reaparece na sua frente, vermelho, suado, despenteado, sempre rindo. Diante daquela força da natureza, a menina enfim compreende: Este primo é de verdade. Aquele menino não só é real, como é o ser mais real que já conheceu. Ela fareja imediatamente o perigo.
Convivem os dois no apartamento apinhado de gente, os que já ali viviam — a menina, os avós, eventualmente seu pai —, com os recém chegados: o tio, a tia, a prima bebê, o primo. E os empregados, antigos e novos. Ninguém se entende direito, o que um quer não é o que o outro quer, cada um em momento diferente da vida, todos tendo de adaptar-se à nova realidade. Os tios recém chegados do exílio buscam os fios de uma meada interrompida, os avós, em geral ternos, recolhem-se, ressentidos da invasão doméstica, o pai, que acaba de sofrer o terrível golpe da doença da mulher, parece deslocado... Em meio à barafunda, a menina e o menino. Ele, partido entre dois mundos, falando tcheco e português. Ela, apavorada diante das súbitas mudanças. Um de olho no outro.
Vai começar o embate entre os dois.
Vai começar o embate entre os dois.