segunda-feira, 29 de junho de 2009

Precipício



"Desde o dia em que sua mãe se cansara de gritar no quartinho dos fundos, onde o marido a trancafiava nas madrugadas antes de sair para a roça, desde o dia em que a linda e louca mãe se libertara das grades e ganhara a estrada velha da serra, com metade da cidade gritando atrás — em vão, porque ninguém jamais conseguiu colocar de novo os olhos sobre ela, como um feixe de luz desapareceu para sempre na mata —, desde esse dia, chuvosa madrugada de agosto, o abismo apareceu ao lado da menina Dora. Não sabia se fundo ou o quê, composto de quais matérias, se rochas, dunas, fezes, limbo, fogo, lama, se tudo isso e mais alguma coisa, entumescido de folhas, de bolhas, cavalos marinhos alados, se denso ou rarefeito em mariposas, se gema, sal, luz tardia do universo ou mistérios do mar, vale ou despenhadeiro, sem porquês nem comos, eiras ou beiras, sem nada, nada Dora sabia sobre ele. Abismo apenas, colossal buraco colado ao lado esquerdo do corpo. Bastava uma olhadela a qualquer hora, dia ou noite, para constatar que sim, ele continuava ali, atento, vigilante – um passo em falso, um único passo em falso e a engoliria para sempre."

[Assim começa meu conto “Píncaros precipícios”, parte da obra coletiva Dezamores (S.Paulo, Ed. Escrituras/Sesc SP, 2003). Como minha personagem Dora, há dias em que pressinto um abismo colossal bem aqui ao meu lado. Não sei se me equilibro em suas bordas ou se me atiro dentro dele. Terror e fascinação ao mesmo tempo. Afinal, o que ele significa? O que haverá lá dentro? Liberdade? Dor? Literatura? Autodestruição? Criatividade? Liberdade e dor? Não sei. ]
*Imagem daqui.

10 comentários:

Muadiê Maria disse...

belo e forte começo. gostaria de ler até o final.

um beijo

Janaina Amado disse...

Maria Muadiê: estou no momento reunindo e revisando alguns contos meus (editados e inéditos), com vistas à publicação deles em livro. Foi nesse processo que me reencontrei com "Píncaros precipícios", talvez meu texto mais elaborado. Que bom você gostar do primeiro parágafo!

claudio rodrigues disse...

LIndo texto, Janaína. precisa publicar suas coisas. São de uma intensidade... Vivemos todos à beira do precipício, viver é precipitar-se para o desconhecido.

Denise disse...

Resta a curiosidade.neste misto de medo e vontade.

o que fazer?

De

- Luli Facciolla - disse...

Ai Jana! Fiquei curiosa...

Beijoooo

Mariano disse...

Belo texto, Janaína.Esperamos o livro.

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Janaina, obrigado pelas visitas e comentarios. Linkei o seu blog.
Abracos

Cris disse...

Janaína,

Identifiquei-me de cara com esse começo. Conheço bem os precipícios da alma. Geralmente me atiro neles, agora na maturidade, de forma um pouco mais organizada. Se é que podemos falar assim das emoções.

Beijo, querida. Sorte. Beijão.

clarice ge disse...

Os abismos nos desafiam...
Espero que coloques a continuação. Virei ler com prazer.
Carinhos Janaína

Ana Tapadas disse...

Começo a ter vontade de dedicar o verão a ler as tuas obras! Estás avisada...
Gostei tanto do estilo!
Bj

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