Alguns leitores do meu conto Desejos (como todos os dias), postado abaixo, sugeriram outros possíveis finais: quem sabe a Dolores não realizava suas fantasias? Ela poderia ter encontrado o marido em situação mais comprometedora... quem sabe o marido com o padre? Ela devia ter voltado à padaria (dois votos), e por aí foi.
Vou compartilhar com vocês algumas ideias e sentimentos que tive ao escrever o final desse conto. Aproveito, assim, para tocar num assunto que me interessa muito: as relações - confusas, tempestuosas, tipo ataque de nervos - entre personagens e autores. Vou explorar um pouco esse pântano, esse céu sempre incerto de ódios, paixões, incestos e amores.
Demorei para escrever o final de Desejos, e quando o fiz, escrevi esse que saiu publicado. No entanto, ele não me agradou. "Mas que coisa, então vou largar a Dolores assim, na confusão, sem nada, depois de fantasiar tanto?", eu pensava, frustrada. Não há nada em comum entre mim e a personagem Dolores, somos praticamente opostas. Nem sei como ou por que ela surgiu como meu personagem. Assim, eu, Janaína, não aceito para mim relações amorosas de dominação/submissão, como a da Dolores, e eu, Janaína, não tenho nada a ver com a vida interiorana da Dolores. Contudo, para escrever sobre a Dolores, principalmente para escrever da perspectiva dela, como no conto, eu tive de me aproximar da Dolores, conhecê-la, me por à disposição dela. Como um ator, acho, faz ao interpretar um personagem.
Nesse momento de interação personagem-escritor, caem os valores e julgamentos (não importa o que eu acho da Dolores, nem se concordo com ela, importa que eu transmita o que ela é). Nesse momento da criação, prevalece o amálgama, o abraço entre autor e personagem: o autor abre caminho para o personagem, torna-se seu "cavalo" (para usar a expressão do candomblé), o meio para sua criação expressar-se. Quanto maior, mais íntima essa interação, melhor o personagem, mais verdadeiro, humano e sedutor.
Bom, mas, criada a Dolores, eu não me sentia satisfeita com seu destino: "Ah, essa história não vai acabar assim", resolvi. E, exatamente como me sugeriram agora alguns leitores, escrevi um novo final, e, nele, mandei Dolores de volta à padaria: decepcionada com o marido, humilhada, ultrajada, ela decidiu resolver a parada com o padeiro, completando o que não tinha tido coragem antes de fazer. "Boa, Dolores, dá-lhe, isso mesmo", comemorei.
Mas... alguma coisa ainda me incomodava. "Ainda não está bom", pensei. "Tem alguma coisa neste conto que não está funcionando. Vou deixar o texto dormir mais um pouco."
Certo noite, sonhei com uma solução: escrever quatro finais, todos possíveis; o leitor escolheria qual quisesse, ou ficaria com os quatro. Assim fiz: o primeiro final era o que foi publicado; no segundo, Dolores voltava à padaria, disposta a transar com o padeiro; no terceiro, ela abandonou todas as inibições no casamento, levando o marido a desinibir-se também, e o conto termina com ela transando com o marido sujo de graxa, na garagem dele, ela só de camisetinha vermelha; finalmente, no último ... Não cheguei a escrever esse último - seria a fuga de Dolores, com o padeiro e o filho, para o Rio de Janeiro - porque continuava insatisfeita. "Isso não está funcionando. A idéia é boa, mas o texto está ruim. Não está verdadeiro." E lá foi o texto dormir mais uma vez no fundo do meu computador.
Tempos depois, ao reler tudo, concluí: "O primeiro final é o melhor. Esta é a verdadeira Dolores, é isso o que ela faria, isso foi o que ela fez: ao flagar o marido, ficou apavorada, confusa e dolorida, sentindo a vida toda revirada, mas sem ação. Pode ser até que, depois, ela fizesse alguma coisa, tomasse alguma atitude, mas eu não sei qual. Então, este conto acaba assim." E o postei.
Não sei se é o melhor final. Certamente não é o que eu, Janaína, gostaria que fosse. Mas foi o que senti literariamente mais verdadeiro, o mais fiel à personagem Dolores. Posso dizer que, após brigar por um tempo com a personagem, retornei à ela e à sua perspectiva, consegui de novo abrir passagem para sua vontade, tornei-me de novo a sua voz.
Final feliz, então, para esse imbroglio todo? Possa ser, como se diz na Bahia. Mas não tenho tanta certeza: afinal, quem me garante estar interpretando bem os desejos da personagem que criei? Quem me garante que, pensando falar por ela, na verdade falo apenas por/de mim?
O que vocês acham disso tudo?
6 comentários:
Janaína,
Acho que você tem toda a razão...como também têm a razão os vários outros blogueiros que sugeriram finais. Toda obra literária é aberta porque, além do papel, ela só existirá na lembrança, na maneira como os que leem, a fizeram real. De mesma forma,o conto é seu e as personagens, expressão de sua intuição criativa. Assim...você tem razão de deixar Dolores ao sabor da dúvida. Como também estão todos aqueles que retiraram Dolores de suas mãos e as fizeram deles. Como eu também fiz.
Beijo grande. E se te for possível, passe no meu outro blog, o www.criativesse.blogspot.com. Leia minha crônica de sexta. Gostaria de sua opinião. bjss. Veronica
concorda coma a sua abertura mas a obra, escrita, pintada ou musicada, é pertença do artista. Ele é Deus a comandar as suas personagens e os leitores, os ouvintes, os espectadores, são apenas humanos dependentes do que dão. A arte é isso mesmo.
Beijinhos
Vou continuar a vir cá
É assim mesmo que a coisa funciona, Janaína. Autor e personagem estão juntos até o momento em que o segundo ganha autonomia. O autor conhece esse momento.
Obrigada pela boa sugestão lá no Coluna do Meio. Acho que vou pensar no assunto.
Beijo e uma semana produtiva.
Janaína,
Ainda estou esperando o seu celular ou uma maneira de encontrarmo-nos aqui em Maceió. Quero fazer algo em conjunto contigo... ou um conto ou um poema. Por favor mande para o meu blog ou email..não irei publicar o número ok!
Adriano Nunes.
Abraço forte!
Janaína,
com este segundo post vc nos dá uma verdadeira aula de como se escrever. Todos os detalhes, inclusive dos conflitos autor/personagem. Passado o efeito, fica só o autor e seus dilemas. Resolva. Não tem jeito.
Beijo, menina
Parabnés pelo post e pelo blog.
Obrigado pela visita.
Voltarei.
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