sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sobre personagens e escritores


Alguns leitores do meu conto Desejos (como todos os dias), postado abaixo, sugeriram outros possíveis finais: quem sabe a Dolores não realizava suas fantasias? Ela poderia ter encontrado o marido em situação mais comprometedora... quem sabe o marido com o padre? Ela devia ter voltado à padaria (dois votos), e por aí foi.

Vou compartilhar com vocês algumas ideias e sentimentos que tive ao escrever o final desse conto. Aproveito, assim, para tocar num assunto que me interessa muito: as relações - confusas, tempestuosas, tipo ataque de nervos - entre personagens e autores. Vou explorar um pouco esse pântano, esse céu sempre incerto de ódios, paixões, incestos e amores.

Demorei para escrever o final de Desejos, e quando o fiz, escrevi esse que saiu publicado. No entanto, ele não me agradou. "Mas que coisa, então vou largar a Dolores assim, na confusão, sem nada, depois de fantasiar tanto?", eu pensava, frustrada. Não há nada em comum entre mim e a personagem Dolores, somos praticamente opostas. Nem sei como ou por que ela surgiu como meu personagem. Assim, eu, Janaína, não aceito para mim relações amorosas de dominação/submissão, como a da Dolores, e eu, Janaína, não tenho nada a ver com a vida interiorana da Dolores. Contudo, para escrever sobre a Dolores, principalmente para escrever da perspectiva dela, como no conto, eu tive de me aproximar da Dolores, conhecê-la, me por à disposição dela. Como um ator, acho, faz ao interpretar um personagem.

Nesse momento de interação personagem-escritor, caem os valores e julgamentos (não importa o que eu acho da Dolores, nem se concordo com ela, importa que eu transmita o que ela é). Nesse momento da criação, prevalece o amálgama, o abraço entre autor e personagem: o autor abre caminho para o personagem, torna-se seu "cavalo" (para usar a expressão do candomblé), o meio para sua criação expressar-se. Quanto maior, mais íntima essa interação, melhor o personagem, mais verdadeiro, humano e sedutor.

Bom, mas, criada a Dolores, eu não me sentia satisfeita com seu destino: "Ah, essa história não vai acabar assim", resolvi. E, exatamente como me sugeriram agora alguns leitores, escrevi um novo final, e, nele, mandei Dolores de volta à padaria: decepcionada com o marido, humilhada, ultrajada, ela decidiu resolver a parada com o padeiro, completando o que não tinha tido coragem antes de fazer. "Boa, Dolores, dá-lhe, isso mesmo", comemorei.

Mas... alguma coisa ainda me incomodava. "Ainda não está bom", pensei. "Tem alguma coisa neste conto que não está funcionando. Vou deixar o texto dormir mais um pouco."

Certo noite, sonhei com uma solução: escrever quatro finais, todos possíveis; o leitor escolheria qual quisesse, ou ficaria com os quatro. Assim fiz: o primeiro final era o que foi publicado; no segundo, Dolores voltava à padaria, disposta a transar com o padeiro; no terceiro, ela abandonou todas as inibições no casamento, levando o marido a desinibir-se também, e o conto termina com ela transando com o marido sujo de graxa, na garagem dele, ela só de camisetinha vermelha; finalmente, no último ... Não cheguei a escrever esse último - seria a fuga de Dolores, com o padeiro e o filho, para o Rio de Janeiro - porque continuava insatisfeita. "Isso não está funcionando. A idéia é boa, mas o texto está ruim. Não está verdadeiro." E lá foi o texto dormir mais uma vez no fundo do meu computador.

Tempos depois, ao reler tudo, concluí: "O primeiro final é o melhor. Esta é a verdadeira Dolores, é isso o que ela faria, isso foi o que ela fez: ao flagar o marido, ficou apavorada, confusa e dolorida, sentindo a vida toda revirada, mas sem ação. Pode ser até que, depois, ela fizesse alguma coisa, tomasse alguma atitude, mas eu não sei qual. Então, este conto acaba assim." E o postei.

Não sei se é o melhor final. Certamente não é o que eu, Janaína, gostaria que fosse. Mas foi o que senti literariamente mais verdadeiro, o mais fiel à personagem Dolores. Posso dizer que, após brigar por um tempo com a personagem, retornei à ela e à sua perspectiva, consegui de novo abrir passagem para sua vontade, tornei-me de novo a sua voz.

Final feliz, então, para esse imbroglio todo? Possa ser, como se diz na Bahia. Mas não tenho tanta certeza: afinal, quem me garante estar interpretando bem os desejos da personagem que criei? Quem me garante que, pensando falar por ela, na verdade falo apenas por/de mim?

O que vocês acham disso tudo?

6 comentários:

Assim que sou disse...

Janaína,

Acho que você tem toda a razão...como também têm a razão os vários outros blogueiros que sugeriram finais. Toda obra literária é aberta porque, além do papel, ela só existirá na lembrança, na maneira como os que leem, a fizeram real. De mesma forma,o conto é seu e as personagens, expressão de sua intuição criativa. Assim...você tem razão de deixar Dolores ao sabor da dúvida. Como também estão todos aqueles que retiraram Dolores de suas mãos e as fizeram deles. Como eu também fiz.
Beijo grande. E se te for possível, passe no meu outro blog, o www.criativesse.blogspot.com. Leia minha crônica de sexta. Gostaria de sua opinião. bjss. Veronica

Anônimo disse...

concorda coma a sua abertura mas a obra, escrita, pintada ou musicada, é pertença do artista. Ele é Deus a comandar as suas personagens e os leitores, os ouvintes, os espectadores, são apenas humanos dependentes do que dão. A arte é isso mesmo.

Beijinhos

Vou continuar a vir cá

dade amorim disse...

É assim mesmo que a coisa funciona, Janaína. Autor e personagem estão juntos até o momento em que o segundo ganha autonomia. O autor conhece esse momento.
Obrigada pela boa sugestão lá no Coluna do Meio. Acho que vou pensar no assunto.
Beijo e uma semana produtiva.

ADRIANO NUNES disse...

Janaína,


Ainda estou esperando o seu celular ou uma maneira de encontrarmo-nos aqui em Maceió. Quero fazer algo em conjunto contigo... ou um conto ou um poema. Por favor mande para o meu blog ou email..não irei publicar o número ok!


Adriano Nunes.
Abraço forte!

valter ferraz disse...

Janaína,
com este segundo post vc nos dá uma verdadeira aula de como se escrever. Todos os detalhes, inclusive dos conflitos autor/personagem. Passado o efeito, fica só o autor e seus dilemas. Resolva. Não tem jeito.
Beijo, menina

DILERMArtins disse...

Parabnés pelo post e pelo blog.
Obrigado pela visita.
Voltarei.

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