
Barack Obama será eleito presidente dos Estados Unidos (toc, toc, toc). Trajetória incrível, a deste homem. Em um país partido pelas diferenças raciais, onde brancos e negros dificilmente convivem entre si, ele nasceu no mais distante Estado americano, o Havaí, filho de mãe branca e pai negro, do Quênia. Foi criado pela mãe e avós maternos, naturais do Estado do Kansas, brancos como a neve, num Havaí entupido de asiáticos. Na infância, viveu durante alguns anos também na Indonésia, pois sua mãe se casou de novo, com um indonésio (ele tem uma linda irmã por parte de mãe, Maya, nascida na Indonésia). Tudo isso o deixou confuso, ansioso por entender qual o seu lugar no mundo: meus familiares “não compreendiam que eu precisava de uma raça”, escreveu Obama em sua emocionante autobiografia, chamada em português
A Origem dos meus sonhos (Ed. Gente, 2008).
Esta autobiografia foi publicada há muitos anos, antes de Obama sequer pensar em ser político. Quando cursava a pós-graduação em Harvard, ele foi eleito o primeiro afro-americano a dirigir a prestigiosa revista de Direito daquela universidade, chamando a atenção da mídia. Em conseqüência, foi convidado por uma editora para escrever sobre sua experiência racial. Acabou relatando a história da própria vida, com suas múltiplas relações raciais, e o que ela lhe havia ensinado sobre o assunto.
Na onda da eleição presidencial, o livro foi republicado. Nele, Obama refere-se muito ao pai (de quem herdou o nome), ou melhor: à sua busca pelo pai. Obama pai saiu do Havaí quando o filho era pequeno, para se tornar o primeiro africano a cursar pós-graduação em Harvard. Contudo, não retornou ao Havaí, mas ao seu Quênia natal. Obama o viu apenas mais uma vez, em Honolulu. Aquele pai ausente, quase endeusado pela família da mãe, tornou-se o grande enigma da vida do filho. Durante os anos de universidade, cursada na Califórnia, quando o movimento negro se radicalizava nos EUA, Obama gostava de pensar num pai idealizado, símbolo do “verdadeiro africano”, homem puro, bom, orgulhoso de suas origens, espécie de símbolo do qual os afro-americanos descendiam. O pai morreu quando ele terminou a universidade.
Alguns anos depois, ao visitar sua numerosa família no Quênia, Obama descobriu que seu pai já era casado quando encontrou sua mãe, que tivera muitos filhos, antes e depois dele, e que sua atuação pessoal e política no Quênia, longe de ter sido reta e gloriosa, fora irregular e bastante polêmica. Numa aldeia do interior do Quênia, Obama conheceu enfim o lado humano e o sofrimento da vida do pai quando criança, narrados pela avó paterna. Foi ali, junto ao túmulo do pai, enterrado no quintal da avó, que Obama enfim se reconciliou com suas origens e com a figura do pai, finalmente humanizado e amado.
Entre o término da universidade e a pós em Harvard, Obama trabalhou anos como organizador social em Chicago, cidade com alto número de afro-americanos miseráveis e pobres. Contando com poucos recursos, na base da tentativa e erro, desenvolveu um trabalho brilhante junto àquelas comunidades. Daí foi para Harvard, com o intuito de se aprofundar em Direito – essencial para a defesa dos pobres -, e, de volta a Chicago, desenvolveu um trabalho ainda melhor, que incluiu da defesa legal de prisioneiros condenados à pena de morte (livrou mais da metade deles, gente pobre que nunca tivera advogados decentes) até atuação junto a grupos de aidéticos, alcoólatras, drogados e todo tipo de desajustados sociais. Eleito primeiro à Assembléia Legislativa de Illinois, venceu depois a disputa para Senador por este mesmo Estado, contra todas as previsões. Atualmente, é o único senador afro-americano dos EUA. Sua indicação como candidato democrata à Presidência da República também foi surpresa, já que, no início, todos esperavam a vitória da ex primeira dama e experiente política Hillary Clinton.
Obama é um político diferente, que não deve ser analisado pelas mesmas lentes dos outros. Tem ligação visceral com os pobres (não apenas negros), conhece intimamente seus problemas, pois lidou a vida inteira com eles, mas, ao mesmo tempo, sua sólida educação permite-lhe, com a ajuda de uma boa equipe, pensar e propor soluções inovadoras para os problemas do seu país e do mundo. Ótimo orador, ótimo organizador – não venceu eleições apenas discursando, mas sobretudo fazendo organização de base, trabalho de formiguinha -, Obama é principalmente um negociador, um homem do diálogo, capaz de costurar acordos entre contrários, como sua história pessoal lhe ensinou a fazer. Não é à toa que, ao vencer Hillary em campanha que rachou seu partido, conseguiu reunificar os democratas. Mostrou também sua capacidade de dialogar, unir e construir durante o dramático episódio do desentendimento com seu pastor, o que gerou a pior crise de sua campanha; quando todos pensavam que Obama sucumbiria, ele se trancou no escritório por dois dias, para sair dali com o mais completo e bem pensado texto sobre as relações raciais nos EUA. Neste texto, entre outras coisas Obama assinalou que em seu país a questão racial não é discutida, sendo mais do que tempo para fazê-lo. “É preciso conversarmos sobre raça”, escreveu. E mostrou como os americanos deviam, e podiam, construir uma nação etnicamente integrada, não dividida.
Na prática política, Obama tem defendido soluções sociais e econômicas inovadoras, como as que inventou em Chicago, tem oferecido mudança, contra a mesmice conservadora. Contrário ao uso indiscriminado de armas no país, desde o início se opôs no Senado à guerra do Iraque, propondo utilizar os milhões economizados na guerra em programas educacionais e sociais dentro dos Estados Unidos. Possui também uma visão internacional dos problemas, ao contrário da maioria dos políticos norte-americanos, arrogantes e auto-centrados.
Os jovens foram os primeiros a compreender a mudança que Obama representa. Incendiados pela esperança, desde o início da campanha representam sua base eleitoral mais sólida. No começo, os afro-americanos dividiram-se entre ele e Hillary (os Clinton haviam feito um trabalho muito bom junto aos negros), mas depois se entusiasmaram com a possibilidade de eleição de um dos seus, e também com a perspectiva, como prega Obama, de, pela primeira vez na história, os EUA superarem rupturas e ressentimentos raciais e promoverem integração e harmonia racial. Pouco a pouco, Obama foi unindo americanos de diversas regiões, idades, etnias, ideologias e segmentos sociais. Fez isso adaptando ao mundo de hoje os chamados “valores americanos”, um conjunto de idéias que perpassa a história dos EUA – ou que os americanos acham que perpassa -, como democracia, propriedade privada, livre iniciativa, valorização do trabalho, respeito às diferenças, etc. Obama aprendeu com a própria experiência, transformando uma vida singular e difícil, vivida na intersecção, na corda bamba entre várias etnias e culturas apartadas, em uma forma solidária e rica de compreender o mundo. É um homem de pensamento próprio.
Sei perfeitamente que, eleito Presidente, fará muito menos do que desejaria ou poderia. O lobby de Washington é fortíssimo, os interesses dos grupos econômicos são muito poderosos, e agora a crise econômica se instalou bem no coração do seu país. Obama decerto terá de ceder, desviando-se de sua rota original em múltiplas concessões, como já o fez algumas vezes durante a campanha. Mesmo assim, será um Presidente infinitamente melhor do que o tacanho, fundamentalista e belicoso Bush, e também melhor do que Mc Cain. Sua eleição não está assegurada. Mas, se acontecer, será uma esperança de melhores tempos para os EUA e o mundo, para você, para mim, para todos nós. Estamos no mesmo barco.
Nossa, me empolguei, escrevi horrores. Aos que chegaram até aqui, meu muito obrigada, e desculpem a extensão do texto.