Se pensarmos bem, tudo é tradução, ou seja, a maioria das atividades humanas consiste em transmitir uma ideia, uma impressão, uma canção, um poema, um objeto, um conhecimento de uma realidade para outra, em traduzi-los, em torná-los inteligíveis de um ambiente para outro, de um grupo de pessoas para outro. Quando dou uma aula, estou traduzindo um determinado conteúdo para os alunos. Se toco uma peça ao piano, traduzo, usando meus conhecimentos e técnica, uma peça que originalmente alguém compôs, em si também uma tradução dos sentimentos e ideias do seu compositor... a teia que vai se estabelecendo entre os humanos é quase infinita, nessas aproximações que fazemos, para nos comunicar.
Conheço poucos textos sobre tradução tão bons quanto este de Saramago. Referente à escrita e à tradução entre idiomas, foi no entanto concebido no sentido amplo a que me referi:
“Escrever é traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos […] para um código convencional de signos, a escrita, e deixamos às circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor, não a integridade da experiência que nos propusemos transmitir (inevitavelmente parcelar em relação à realidade de que se havia alimentado), mas ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser intraduzível, por exemplo, a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como o resto de um sonho que o tempo não apagará por completo.
O trabalho de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido “tradução”, isto é, uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural que não é a do tradutor, substanciada, essa percepção, num entramado linguístico e semântico que igualmente não é o seu. O texto original representa unicamente uma das “traduções” possíveis da experiência da realidade do autor, estando o tradutor obrigado a converter o “texto-tradução” em “tradução-texto”, inevitavelmente ambivalente, porquanto, depois de ter começado por captar a experiência da realidade objecto da sua atenção, o tradutor realiza o trabalho maior de transportá-la intacta para o entramado linguístico e semântico da realidade (outra) para que está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai. Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem “alquímica” em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido. O diálogo entre o autor e o tradutor, na relação entre o texto que é e o texto a ser, não é apenas entre duas personalidades particulares que hão-de completar-se, é sobretudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconhecer-se."
[José Saramago, O Caderno de Saramago, 2/7/09]
O trabalho de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido “tradução”, isto é, uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural que não é a do tradutor, substanciada, essa percepção, num entramado linguístico e semântico que igualmente não é o seu. O texto original representa unicamente uma das “traduções” possíveis da experiência da realidade do autor, estando o tradutor obrigado a converter o “texto-tradução” em “tradução-texto”, inevitavelmente ambivalente, porquanto, depois de ter começado por captar a experiência da realidade objecto da sua atenção, o tradutor realiza o trabalho maior de transportá-la intacta para o entramado linguístico e semântico da realidade (outra) para que está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai. Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem “alquímica” em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido. O diálogo entre o autor e o tradutor, na relação entre o texto que é e o texto a ser, não é apenas entre duas personalidades particulares que hão-de completar-se, é sobretudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconhecer-se."
[José Saramago, O Caderno de Saramago, 2/7/09]
7 comentários:
Na verdade, quando estamos nos preparando para escrever o que vemos, por sua vez, traduzir ao texto escrito ,as coisas que vemos, mas näo só fragmentada, como um conjunto de substantivos, mas sim com a emoçöes que estas coisas nos dão. Palavras descritivas, mais sentimentos, é igual a traduções, uma narrativa do que ver ou sentir ou pensar.
Mas o tradutor, que só vê o que está escrito, não consegue sentir o que senti ao escrevê-lo, e também se é uma outra língua, outra cultura, eu acho que você tem que conhecer não só a lingua, dialeticamente, mas culturalmente também, e mesmo assim, então será sempre algo quase inacessível poder transmitir absolutamente tudo.
Um abraço-
Olá, Janaína
Tudo bom?
Traduzir nossos sentimentos para palavras nem sempre é possível... precisamos de inspiração e muita emoção. Traduzir o sentimento dos outros então... sobretudo no aspecto emocional... é muito difícil um tradutor manter-se à parte do conteúdo que transporta, e deixá-lo intacto. Não acho que exista esse momento alquímico. A tradução é química que interage e se refaz a cada momento, e o que era não volta a ser o que foi. Daí a importância de se ler o original, pois muito se perde das obras traduzidas (e às vezes muito se ganha nelas tb, né?). O incrível poder de reler as partituras de mestres com um talento peculiar faz os grandes intérpretes; a facilidade que alguns têm de florear a história e torná-la agradável para as crianças faz os grandes professores. Essa é a participação "ativa" do transmissor das ideias e fatos que outros criaram ou contaram.
Êta assunto extenso esse que vc puxou... tem papo pra virar a noite rsrssrsrss vou parando por aqui pra não falar demais (acho que já falei...)
Beijos, Marcia
O «anónimo» que me antecede diz muito do que é oportuno dizer (pena usar o anonimato).Este etxto de saramado surpreende porque foge ao registo que o tornou inimitável e o melhor escritor vivo do mundo. Mostra bem como ele é filósofo; talvez, por isso, recorra a este registo. Este pormenor prende-se, afinal, com o tema das traduções. Utilizamos os registos (de escrita ou outros)que julgamos mais adequados à mensagem. Por último, traduzir é também trair, como sabes. Parabéns pelo teu blog.
Passar ao leitor 'ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser intraduzível' – é a dificuldade maior de um escritor. Nem as melhores palavras ou o melhor estilo são capazes de traduzir para o leitor esse intraduzível.
O texto é ótimo, como sempre.
Beijo pra você.
Tudo bem com você?
Janaína este seu texto traduz muita coisa com certeza.
Um Bjao
Difícil para o escritor se traduzir no papel, mais difícil ainda para o leitor traduzir o que o escritor conseguiu traduzir de si mesmo.
Sem dúvida, uma tarefa fascinante. Para ambos.
Beijo, Janaína!
Excelente texto!
Saramago é, de fato,
excepcional...
Um beijo,
doce de lira
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