sexta-feira, 5 de junho de 2009

Quem somos, mesmo?



Uma conhecida anedota conta que, ao criar o Brasil, Deus caprichou: praias belíssimas, terra fértil, água abundante, paisagens de tirar o fôlego, vegetação esplendorosa, clima ameno... Sentindo-se injustiçados, os outros países logo protestaram junto a Deus, que lhes respondeu:
— Calma, esperem só para ver o povinho que eu vou colocar lá!
A anedota desnuda uma das mais significativas representações da nação brasileira, presente tanto nas idéias, sentimentos e imaginação populares, quanto nas produções e círculos de intelectuais, artistas e profissionais da mídia. O núcleo dessa representação reside na profunda separação entre, de um lado, a “terra boa”, o belo país “abençoado por Deus e bonito por natureza” cantado por Jorge Benjor, de que nós, brasileiros, tanto nos orgulhamos, e, de outro lado, o “povo ruim”, a gente brasileira que não está à altura da beleza e fertilidade do país. A “ruindade” do povo (ou seja, a “ruindade” de cada um de nós), dependendo de quem fala, de quando fala e para quem fala, é explicada pela mistura ou degeneração das raças, pela preguiça, corrupção, presença de degredados, falta de patriotismo, séculos de colonialismo, escravidão, superexploração econômica, herança católica ibérica, malandragem, preconceitos, atraso, etc.
Essa postura inferiorizada costuma vir alternada com efusivas, e igualmente obsessivas, afirmações acerca das maravilhas do país Brasil, não só da sua terra, mas do seu povo, apresentado como cordial, guerreiro, alegre, honesto, amigo, sem preconceito racial, inteligente, musical, obediente, capaz, heróico, patriota, atleta e trabalhador, um povo muito melhor do que qualquer outro existente no planeta. Esse conjunto de idéias afirmativas e orgulhosas, que com freqüência descamba para o nacionalismo exaltado, representa a outra face da mesma moeda.
Os dois tipos de representação, tanto a que nos deprime como a que nos exalta, remontam ao início do período colonial, e vêm de muitas formas se adensando entre nós. Elas nos envolvem a todos em suas teias invisíveis, a ponto de existir hoje, no país, uma obsessão nacional acerca da própria identidade, num grau e intensidade que não acontece nos Estados Unidos nem nos países europeus.
Como um pêndulo, nós nos movimentamos entre a sensação de que, no fundo, há algo de profundamente errado conosco, de que nunca “damos certo” — incapazes que somos de construir a nação que desejamos; e, no pólo oposto, a também persistente sensação de que somos fantásticos, maravilhosos, capazes de estourar a boca de qualquer balão, e por isso exibimos esse imenso e desmedido orgulho de sermos brasileiros.
Nos limites desse pêndulo — que é uma armadilha —, nós vivemos nos perguntando obsessiva, agitada, angustiadamente que país é este, e qual será o nosso destino: um mítico abismo infalivelmente nos ronda, mas um pote de ouro e felicidade também nos espera logo ali, na esquina do futuro. Deslocados, vivemos em busca de nossa identidade.
[Este meu texto saiu publicado na úlima “Revista de História da Biblioteca Nacional”, Ano 4, nº 45, Junho 2009, atualmente nas bancas.]

8 comentários:

Mariano disse...

Tiro certeiro, Janaína.
A dor e a delícia de ser brasileiro.

Ana Tapadas disse...

Vou levar comigo o link do Enredos...posso?
beijito

Rodrigo de Souza Leão disse...

Obrigado pela visita ao meu blogue. Adorei o seu.

Paulo Tamburro disse...

SEREI SEU SEGUIDOR,PARABÉNS PELO BLOG !!!

Celia disse...

Uma realidade que de um lado queremos mostrar e do outro, queremos esquecer.
Muito bom seu blog. Vi aqui atraves da Ana Pontes. Voltarei. Bj

claudio rodrigues disse...

Adorei o texto. DEscriçao precisa da brasilidade que tanto buscamos...

Aninha Pontes disse...

Você demonstrou aqui o sentimento de todos nós. Conseguiu expor a cpnfusão de todos nós.
Mostrou a delícia de ser brasileiro.
Você é dez.
Um beijo querida.
Tenha uma ótima semana.
Estou meio afastada, pura falta de tempo. Estou às voltas com minhas roupas, aproveitando o frio.

Barbara disse...

Recomendaria a leitura do último livro escrito pelo maior conhecedor do Brasil, Darcy Ribeiro em "O Povo Brasileiro".
A maioria conhece Darcy por causa dos Cieps, mas ele além de muitas coisas, foi DOUTOR HONORIS CAUSA DA SORBONNE.
O melhor brasileiro do século XX.
Somos tudo isto que está em sua postagem mas de maneiras várias e a causa não está no caldeirão genético não - isso soa a coisa de skinhead.
Por sermos vira latas é que suportamos com louvor a tudo - com louvor sim, dignidade não.
Vá entender...
Só Darcy explica.
Obrigada.

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