O primeiro sinal, eu o senti há exatos vinte anos: abri o jornal e, horrorizada, li que o filho de uma amiga, um rapaz que eu conhecia bem, fazia parte de uma quadrilha que acabara de ser descoberta. Composta por profissionais e estudantes universitários, a tal quadrilha recebia dinheiro de vestibulandos para, depois de falsificar documentos, prestar os exames de vestibular no lugar dos candidatos. Cursando o quarto ano de Biologia, o filho da minha amiga passaria fácil em qualquer vestibular.
Imediatamente, pensei em minha amiga e em seu marido, que eu conhecia há anos. Ambos honestíssimos, ele ligado à Justiça, ela ocupando cargo de projeção na universidade. Deviam estar arrasados com a notícia. Decidi ir à casa deles, para ver se poderia ajudar em algo. Lá chegando, assisti à seguinte cena: chorando, minha amiga dizia ao filho que não compreendia como ele podia ter agido assim, contra todos os princípios em que fora educado, e, afinal, sem estar passando por apertos financeiros, já que recebia dos pais o que necessitava para viver. A resposta do filho, em tom irritado, foi: “Mãe, todo mundo age assim, hoje todos querem tirar a sua vantagem, conseguir algum. Vocês me dão o necessário pra viver, sim, mas eu quero mais, quero muito mais! E quer saber? Você e papai, com essa história de honestidade, são uns bestas, uns idiotas!”.
Foi meu sinal vermelho. Percebi que nossa crise não era apenas socioeconômica, mas também uma violenta crise de valores, que subvertia tudo e se reproduzia sozinha, à medida que alcançava os jovens. Daí em diante — ou seja, nos últimos vinte anos —, só vi a corrupção, de corpos e almas, aumentar no Brasil. Um escândalo atrás do outro, do Oiapoque ao Chuí, em todos os níveis da administração pública e da iniciativa privada. Não vou enumerar todos, pois vocês os conhecem bem, e não quero enlamear meu blog, mas, só pra lembrar alguns de agora: os 181 (!!!) diretores do Senado, a corrupção na polícia paulista (foi o último escândalo: mas antes teve também na carioca, gaúcha, mineira, pernambucana, e por aí vai), os fortes sinais de corrupção no Judiciário... Moro num dos Estados mais pobres do Brasil: pois quase a metade dos deputados estaduais alagoanos foi afastada, por fortes indícios de corrupção (Operação Taturana), mas assim mesmo eles insistem em retornar, sabem por quê? Porque cada um recebe, no conjunto, contando as verbas de gabinete, cem mil reais por mês. Isso, num Estado em que grande parte da população não consegue alcançar um salário mínimo!!!
Essa crise de valores é sistêmica, atinge o país inteiro, está entranhada em todas as nossas instituições. Sempre foi assim? Desde o período colonial temos aqui uma elite em grande parte ávida por ganhar, explorar ao máximo e, se possível, depois se mandar. É histórico, isso. Mas tenho a impressão de que, nas últimas décadas, a nossa ganância aumentou e se espalhou. Será por que hoje se investiga e se puna mais do que antes? É possível (a criação do Ministério Público foi um avanço), mas não é só isso. A corrupção aumentou, mesmo. Alguns valores que aprendi, como honestidade, respeito ao próximo, dignidade, eram naturais a certas camadas da população — às pessoass do campo, operários, setores médios, determinadas elites, inclusive políticas. Eram, portanto, valores sociais. Mas hoje parecem ter sumido do nosso cardápio, ou ficado nos corações e mentes de poucos, que, encantuados, não estão conseguindo fazer valer suas idéias. Foram substituídos pelo alpinismo social, pela ambição desenfreada, por essa postura de ganhar e vencer a qualquer custo que acompanha as sociedades emergentes (e também as ricas, quando em crise).
O pior é que não estou conseguindo enxergar saídas, a não ser as de sempre, que não parecem mais surtir efeito: protestar (como faço aqui), aliar-me aos que protestam, ajudar a organizar a sociedade, votar bem (mas acho o sistema eleitoral, aparentemente democrático, viciado), e por aí vai. Na verdade, a única mudança profunda em que ainda acredito é a conseguida via educação. Mas... apesar de um ou outro progresso, falar de educação no Brasil é falar de uma das nossas maiores mazelas e vergonhas sociais.
É isso. Desculpem-me o mau jeito, o pessimismo, a impotência. Eu só queria desabafar um pouco. E também que vocês soubessem: quando escrevo sobre qualquer coisa — quando posto um poema, um conto, uma canção, uma brincadeira —, trago sempre esse conjunto de questões, aflições e indignações dentro de mim. Elas nunca me abandonam. São como um filme que passa sem parar no fundo da minha mente, um filtro que me insulta e me diz quem sou.