domingo, 1 de fevereiro de 2009

Desejos (como todos os dias)




— Pai, afasta de mim a tentação...

Dolores sussura mais uma vez a súplica, apressando o passo em frente à padaria. Não posso vê-lo de novo, não posso, não agüento...
Esmaga o dinheiro na mão, procurando fixar o pensamento nas compras do mercadinho: abóbora, maxixe, batata, banana da terra... Ainda bem que amanhã vou fazer o cozido, isso vai me ajudar a esquecer o corpo jovem, musculoso, brilhante de suor do... Droga — ele, de novo! Qualquer pensamento, até mesmo sobre o cozido, me arrasta de volta pro corpo deste padeiro!
Já se pegou pensando nele, no banho. Sob a água do chuveiro, sua mão imperceptivelmente deslizou barriga abaixo. Não fazia aquilo há tantos anos... Nem se lembrava mais como era bom! Quase desmaiou de prazer, pernas bambas, boca entreaberta dizendo palavrões no ouvido do deus louro. Encostou-se no espelho pra não cair. Fantasiou o corpo nu do padeiro ali grudadinho no seu, sexo com sexo, sexo no sexo. Lambeu cada pedaço dos músculos do peito dele, os pêlos louros encaracolando dentro da sua boca...
— Doloooores!
O grito do marido zuniu pela casa até bater-lhe no ouvido, assassinando a fantasia.
Todo mundo sabe Mário é um maridão. A rua inteira tem inveja dela. Até bate três vezes na madeira, quando alguém pronuncia o nome dele.
— Maridão que nem esse seu, Dolores, não existe. Põe as mãos pro céu, minha filha, tu tirou foi a sorte grande! – dona Almerinda, a vizinha, sempre lhe diz. Coitada dela, também, casada com o demônio do Alair, que some no breu da noite e só volta pra casa dia claro, sem um tostão no bolso, tropeçando nos pés de tanta pinga, olho boiando nas órbitas... A pobre da Almerinda é que tem de se virar sozinha, lavando roupa dia e noite pra sustentar os meninos.
Mário, não. Mário sempre ali ao seu lado, exemplo de marido, zeloso da casa e do Juninho. Nunca bebeu. Nunca se meteu com mulheres. Sempre a respeitou. Pega cedo na oficina, deixa o batente só quando o último freguês sai. Oficina pequena, de uma porta só, mas com freguesia maior até que a do turco da praça. Mário sem exigências. Come de um tudo, gosta de arroz e feijão e uma mistura, e, em dia de festa, dobradinha. Qualquer trapo serve: “Vou sujar de graxa, mesmo. Quero é que você e Juninho tenham as coisas, se vistam bem. Eu não preciso de nada."
O único luxo de Mário é sua antena parabólica. "Pra que isso?", estranham os vizinhos, examinando com desdém e inveja a majestosa antena a projetar-se da janela do quarto. "Amigo", Mário responde paciente, mão no ombro do enxerido, "Eu tenho insônia, quase não durmo. Um horror! Todas as noites passo horas e horas acordado, a mulher ferrada no sono, mas eu, não: corujão, olho arregalado. Pra me distrair, assisto filme a madrugada toda. Por isso assino essa tevê paga”, explica. “Meu único vício. Não gasto com mulheres, com bebida, cigarro, nada. Só essa assinatura de tevê. Chego do trabalho, e antes mesmo de tomar banho, já tranco a porta do quarto pra ninguém me aborrecer, caio na cama e... plic! Ligo a tevê”, diz.
Aniversário de dez anos de casamento amanhã, dez anos sem nenhuma briga séria. Mário tem só um defeito: é careta, conservador demais. Não deixa ela usar roupa curta, transparente nem apertada; não permite que fique “batendo perna na rua” com as amigas. Não aprova nem mesmo sua novela das oito! “Credo, Mário, que atraso! Isso também já é demais, sabia? O mundo mudou! Eu, hein!”
Verdade que ela também não é desses avanços todos. Criada na roça, família muito católica, quando casou veio direto pra esta pequena Santa Rosa... Lembra-se do dia em que umas primas distantes, adolescentes interessadas em esportes radicais, chegaram de supetão pra se hospedar na casa deles. Queriam percorrer as trilhas do Morro dos Macacos, tomar banho na Cachoeira Alta, essas coisas. Shortinhos mínimos, umbigos à mostra, pernas e bundas de fora, peitos soltos balançando sob as camisetas curtinhas, lá iam elas bater perna pela cidade. Eu, hein, meninas mais oferecidas!
— Dão mais que chuchu... – entreouviu o comentário do vizinho no ouvido de Mário.
Cara fechada, o marido imediatamente a trancou no quarto, exigindo que pusesse “aquelas duas putas” pra fora de casa. Deus do céu, como é que ia fazer isso com as primas, com que cara? Mário não quis saber: se elas não saíssem até o dia seguinte, ele mesmo as expulsaria, a pauladas. Quando finalmente tomou coragem e se aproximou das moças, para conversar, flagrou as duas às gargalhadas, uma delas dizendo:
— Essa prima é uma idiota! Não vê como ela se veste, feito viúva velha! O tempo todo na igreja ... Vive na Idade da Pedra!
— Pois hoje eu vou comer o marido dela lá na oficina, ha ha ha... Sempre quis traçar um mecânico cheio de graxa!
Isso facilitou a expulsão das duas, mas a deixou indignada. Feito uma idiota cozinhando e lavando pras primas, enquanto as duas se exibiam pelas ruas, e ainda por cima queriam lhe tomar o marido! Ah, essa não, era o que lhe faltava! Que fossem pro inferno! Benzeu-se. Mário tem toda razão. Sou da Idade da Pedra mesmo, gosto é de vida dentro de casa, cuidar de marido e filho. Não quero confusão pro meu lado.
Caminhando, relembra agora o dia do seu casamento. Dez anos atrás. Entra na igreja de braço dado com o pai, magrinha, magrinha — só depois ganhou este corpão —, vestido bem rodado pra disfarçar os ossos. Mário cumpriu todas as promessas que lhe fez naquela igreja: amá-la e respeitá-la, na alegria e na tristeza... E ela agora, querendo retribuir a dedicação do marido com sonhos malucos de se esfregar nua no corpo do padeiro!
Enfia-se pela rua do mercadinho, suplicando:
— Pai, afasta de mim essa tentação...
Mas se já fizera de tudo pra esquecer esse homem que irrompeu em sua vida como uma flecha, sem pedir licença, sem perguntar se podia, se ela consentia, armado apenas com a força brutal dos seus músculos, do seu sexo! Ainda por cima atrevido, o filho da mãe! Gosta de agarrar seus dedos por baixo do embrulho do pão, piscar-lhe o olho, soprar beijos que se aninham entre seus seios, entre suaas pernas, na...
— Pai, afasta de mim...
Quando não tem mais ninguém na padaria, diz: “Gostosa”, “Tesuda”, “Bunda boa”, olhando direto nos olhos dela, a ponta da língua molhada devagarinho em torno da boca. Sem vergonha! Quantas vezes jurou nunca mais voltar à padaria? “Ando mais três quarteirões e resolvo pra sempre meu problema”, decide todo dia de manhã, mas à tardinha, ah, à tardinha, quando o cheiro do pão quente invade a sala e acende o desejo, à tardinha já não pensa no filho, em Mário, na casa, não pensa simplesmente, só quer voar, pássara faminta, ao encontro dele, do seu feixe de músculos, seu padeiro do pescoço largo, do braço másculo, do pau gr...
— Dois quilos de tomate, seu Antônio. Vou levar também esta banana da terra e a batata doce... Ah, e abóbora! Amanhã cedo Juninho vem buscar as folhas, viu? Separe as mais frescas.... Aqui está seu dinheiro. Não esqueça do nosso cozido amanhã à noite, seu Antônio, o senhor e dona Celeste. Tchau! Sim, dou seu abraço no Mário.
O sexo de Mário é calmo. Sempre foi, mesmo no começo do casamento. Não é ruim, é bom. Como Mário: confortável, seguro; doméstico. Gosto de arroz com feijão, uma mistura. No começo, ela sentia falta... do quê? Não sabia. Era um oco por dentro, uma gastura, por sua pele corriam comichões desordenados, remelexos, arrepios solteiros... Às vezes se enchia de coragem, conduzia a mão de Mário até o seu sexo, no auge do amor gritava palavras obscenas que não sabia onde aprendera, comprava à prestação camisolas de renda preta, dormia sem calcinha para provocá-lo, oferecia a bunda.... Mário: “Dolores, você é maluca?”, e tapava a sua boca, e cobria a sua bunda, e vestia-lhe a blusa, escondendo seu desejo. Trazia-a de volta para o sexo dele, carinhoso, tranqüilo: matrimonial. Estava certo aquilo? Perguntou às amigas, tentou falar com Mário. Ele desconversava, uma vez sussurou uma esquisitice, qualquer coisa como “Meu pau não cresce muito, mas eu compenso”.
Depois do nascimento de Juninho, sossegou. Ocupou-se do filho, passou a pensar pouco em sexo, a praticar menos ainda. “Você amadureceu, Dolores”, Mário disse, satisfeito. Concordou, orgulhosa. Isso até...
... o demônio do padeiro aparecer, acordando sonhos mortos! Despertando desejos loucos, reavivando delírios! O que fazer desse fogo que não me deixa dormir, e, se eu durmo, incendeia meus sonhos? Como aplacar esse terremoto que tira completamente minha pequena dose diária de felicidade? O padeiro tem a resposta, escrita no embrulho cheiroso do pão: “Espero você amanhã oito horas rua das Oliveiras 33 minha casa não tem ninguém só nós dois vem não vai se arrepender”.
Dez pras oito, já! Ajeita as compras do cozido na sacola. Escondida lá no fundo, a camisola preta. Não é longe, andando rápido chegará a tempo na rua das Oliveiras. Corpo alvoroçado, desejo na pele, ela inteira transformada em sexo, flor preta e vermelha a gritar pela rua sua fome e sua sede. Fantasia o corpo nu do padeiro de bruços na cama. Beija os pelos louros dele, que acompanham a linha da coluna, do pescoço até a curva da bunda, a bunda mais gostosa que já sentiu. Revira o padeiro em todas as posições, abre-lhe as pernas, fantasias de gozo e....
— Dona Dolores, que coincidência! Estava pensando justamente na senhora! Temos de organizar muitas coisas para a missa de domingo – sobressalto, a mão branca e fina puxa-a para dentro da igreja.
— Nossa, que susto, padre Felício! – mão sobre o coração disparado. — Não, agora não posso, tô atrasada, amanhã a gente conversa, eu....
— Amanhã não é o dia do seu cozido, dona Dolores? Então! Amanhã a senhora não vai ter tempo, e há coisas muito urgentes aqui...
— Mas, padre...
— Onde é que a senhora vai? – pergunta brusca, olho no olho.
— Eu, eu.... – olho abaixado.
— Pois então! Não se pode recusar o chamado de Deus – com firmeza o padre a arrasta com para a sacristia.
Quando terminam a conversa, às nove e cinco da noite, sente-se outra mulher. Foi Deus quem botou padre Felício no meu caminho! Foi Deus, pra me impedir de fazer loucura. Respira aliviada. Quase fiz a maior besteira da minha vida, ia me arrepender pra sempre! Ajoelha-se em frente ao altar, reza dez ave-marias e dez padres-nossos, em agradecimento ao padre Felício e ao Divino Espírito Santo.
Vira na direção oposta à que veio. Acho que Mário vai gostar de me ver, assim, de surpresa. Inventei tanta história, pra poder sair hoje! Juninho tá passando a noite na casa da comadre Rosa, então quem sabe nós dois, eu e Mário... ri sozinha. Sou doida, mesmo!
Entra na cozinha. Pelo reflexo da televisão no corredor, sabe que Mário já chegou. Vou dar um beijinho nele, lá no quarto. Pode ser que a comemoração dos nossos dez anos comece agora mesmo, hi, hi ... Segura o cordão de prata, escondido no fundo da caixa de costura. Olha com ternura o pequeno embrulho, presente de aniversário de casamento pro marido, as dez prestações todas pagas, dinheiro economizado das compras, um pouquinho a cada dia, pra ele não perceber. Leva o pacote até o quarto. Vai bater — Mário sempre se tranca lá dentro, com sua tevê —, mas percebe a porta entreaberta. Ele achava que não haveria ninguém em casa...
Empurra a porta. Descobre Mário masturbando-se diante de um filme pornô, tão concentrado que nem a enxerga. Estaca à porta, pernas trêmulas. Virgem Maria, o que é isso? Na tevê duas mulheres transam, uma lambendo a outra, pernas abertas. Seus olhos pasmos desviam-se da tevê para Mário, nu na cama. O sexo em riste dele exibe um desejo imenso, intenso, urgente, insuspeito, um desejo que ela jamais imaginara existir, nele ou nela, nem mesmo nas suas fantasias mais loucas sobre o padeiro nu, doido desejo descontrolado de Mário, desejo de homem que vara o mundo e explode em gozo, contaminando para sempre o lençol, a cama, a parede, o ar, as pernas, o sexo, a barriga, o coração, a vida, ah! a vida dela para sempre revirada, revolta, às avessas, ai, a vida dela...
("Desejos", de Janaína Amado - regras para reprodução: Creative Commons)

19 comentários:

valter ferraz disse...

Janaína,
um mergulho profundo nas águas incertas do erotismo. Muito bom mesmo.
Escritora multi-função. Uma hora um conto sensível que nos leva pela mão, noutra logo após um suspense, o clima preparado, o desfecho.
As férias te fizeram bem. Voltou com tudo. Em cima.
Beijo, menina

Aninha Pontes disse...

Janaína querida, muito bom.
Você consegue com seus bons textos, prender a nossa atenção, e nos envolver sem a menor preocupação seo texto é longo ou não.
É mesmo uma artista.
Só fiquei com pena da Dolores não ter satisfeito seu desejo e suas fantasias.
O marido certinho dela bem que merecia.
Um beijo

Dalva Nascimento disse...

Oi, Janaina... menina, que conto, hein?!?!?! nem me conta...

Bjs.

Anônimo disse...

Muito bom , mesmo. Ainda bem que os enredos e as tramas estão de volta. nós agradecemos :)

Anônimo disse...

Volta na padaria.
Mas sabendo que o padeiro é tão mentiroso quanto qualquer ser com um p...entre as pernas.
Só que é gostoso e ainda é capaz de te dar sonhos ( os doces e os da imaginação)

KImdaMagna disse...

Aqui está o seu " e adoro palpitar".

É quase palpável esse palpitar nas palavras...
um xaxuaxo com eco cósmico, digo eu...

Bibliotecária de Babel disse...

Jana, ela merecia pegar ele em condições mais comprometedoras. Ou ele merecia. Ou o padre. Ele e o padre. Os dois e ela olhando.

Eu não perdôo.

E você segura a gente numa destreza de quem sabe conduzir as águas! Seu conto é molhado! Adorei!

ADRIANO NUNES disse...

jana,

Já estou em maceió. Se possível mande o seu celular para o meu email. te ligo e marcamos de nos conhecer ok.

Abraço forte!
Adriano Nunes.

claudio rodrigues disse...

Quanta volúpia!!! Delicia de conto...

Vanessa Anacleto disse...

Janaina, claro que tem como vc participar. Não sei pq seu comentário não apareceu na minha página mas já estou colocando seu link na lista.

Obrigada

Assim que sou disse...

Também acho que a volta à padaria é inevitável. Sonhar é bom demais, mas realizar é aventura ousada e incomparável. O conto é delicioso. Erótico, sensual, atraente.

Gostei de mais!
E gostaria que você lesse o post de hoje do meu novo blog ( www.criativesse.blogspot.com)Quero sua opinião. bjs.Veronica

Senhorita B. disse...

Jana,
O livro se chama Quem conta um conto e foi escrito por doutorandos da UFRJ com a coordenação de Helena Parente Cunha. O trabalho que fizeram sobre mim é extraordinário. Muito bonito mesmo. No mais, também quero almoçar com vcs!(rs)
Beijos,
Renata

dade amorim disse...

Oi, Janaína!
Como diz o Valter, "um mergulho profundo..." e um bom conto.
Um beijo.

Anônimo disse...

janaína:
chego.
um abraço.
romério

Vivien Morgato : disse...

Janaina, gostei.
Sabia que dentro do "caretão" existia algo mais..ahah..

Dalva Nascimento disse...

Oi...

Passando prá deixar um carinho...

Cris disse...

Oi, Janaína,

Amei o conto... Erótico, passando longe do vulgar.
Continua ...

Beijos, querida...

Denise disse...

Gosto tanto de vir por aqui que coloquei entre os favoritos linkados em meu blog.
Espero que não se incomode.

Afagos

De

DILERMArtins disse...

Mas bah, guria.
Muito bom! Parabéns!
Acho que você devia escrever Desejos2 - (como PÃO todos os dias)

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