domingo, 25 de abril de 2010

A vida é feita de nadas


Bucólica

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Miguel Torga


Ah, eu sempre acho que é tempo de ler e reler o grande escritor português Miguel Torga (1907-1995), com sua sabedoria encravada na terra e seu conhecimento das essências. Agora, quando o mundo  se torna cada dia mais aparente e espetaculoso, quando artistas da palavra e da imagem tentam reduzir a arte à afetação dos efeitos especiais, penso que é cada vez mais preciso descobrir e reler Miguel Torga.

Tive a alegria de conhecê-lo pessoalmente em seu pequeno consultório em Coimbra, nos distantes anos 70.  Eu muito jovem, acompanhada de um amigo tão jovem quanto eu, levava um bilhete e uma encomenda enviadas do Brasil por meu tio, o escritor Jorge Amado, amigo dele. Torga, que era médico, nos recebeu assim que seu paciente deixou a sala. Foi solícito, gentil, carinhoso, falou-nos um pouco de Coimbra, pediu que agradecéssemos ao tio a gentileza do mimo, perguntou por ele, e ali mesmo escreveu um bilhete ao amigo brasileiro.

Eu, que já era grande admiradora dos textos de Torga, fiquei observando sua letra um pouco trêmula, o jaleco imaculadamente branco, o perfil fino inclinado sobre o papel, os cabelos brancos... Estava emocionada pela oportunidade de conhecer pessoalmente um dos meus escritores preferidos, e procurei conversar um pouco com ele, para prolongar a situação. Quando já atravessávamos a porta de saída, ele nos chamou de volta, sorriu de forma delicada, e nos disse:   

Obrigado por  trazerem a juventude a esta humilde morada. Eu hoje estava a precisar disso, e se calhar nem o sabia.

18 comentários:

cirandeira disse...

Tens razão,ler, reler ou mesmo conhecer Miguel Torga é sempre prazeroso, porque ele consegue nos
religar às nossas origens,às nossas raízes, que estão a cada dia
mais carentes. Esses "nadas" aos quais ele se refere, são na verdade
o nosso TUDO!
Obrigada por nos relembrar esse magnífico poeta, que aliás, passou
alguns anos conosco, quando era ainda muito jovem.

Um beijo e uma boa semana pra ti

Nato disse...

Wol gostei muiito daqui
belo POEMA,,..

te segui!!
se der passa lah!!

CAOS MUNDIAL - CLICA AQUI, SEGUE E COMENTA

dade amorim disse...

Torga era uma dessas pessoas que sempre se desejaria conhecer, com quem teria sido muito bom conversar, ouvir o que tinha a dizer. O poema é bem emblemático do poeta que ele foi.

Beijo, Janaína, e uma ótima semana.

Prisca disse...

Lindo Janaina... Já estou a te seguir aqui, porque adorei...e seguirei o outro blogue tb, vou vê-o agora. E continuamos a nos cruzar, com Mínimos Ajustes e alguns Encontros com Meus Pensamentos...

João Renato disse...

Olá, Janaina,
Eu adoro Miguel Torga. Tenho a Poesia Completa, e leio quase todo dia. É uma poesia feita com um vocabulário pequeno, quase básico, que, entretanto, é refinadíssima.
É um dos poetas, entre os que eu conheço, que melhor sabem encerrar um poema.
A clareza e objetividade dele são especiais; tudo que ele quis dizer está dito alí, com poucas palavras, quase marteladas.
Abraço,
JR.

nydia bonetti disse...

Bucólica - uma das palavras que mais gosto, de verdade. Este poema tem gosto de terra, de quintal, de pomar - gosto de infância - gosto de vida. Lindo poema de Torga... Beijo, boa semana, Janaina.

Mi Müller disse...

Báh mas que lindeza esse conceito de "nadas" que na verdade são "tudo". Obrigada Janaína por me aprezentar esta singeleza de poeta e esta história delicada e emocionante. Deve ter sido mesmo lindo, ouvir um agradecimento dele!
estrelinhas coloridas...

Ana Tapadas disse...

Lembro-me de recitar esse poema de Torga, muito jovem e pernas trémulas...numa festa de fim de ano escolar. Torga fala muitas vezes com o meu pensamento.
Que sorte, poder falar a Torga. Esta minha amiga é uma privilegiada...
bj

Dalva Nascimento disse...

Que delícia esse encontro, Janaína! Já li dele as Poesias Completas e tem pedaços do meu dia que são completamente dele e de mais ninguém... me fala muito ao coração.

Boa semana, bjs.!

Aninha Pontes disse...

Jana querida:
Além de uma escrita simples e gostosa, você foi feliz na escolha da imagem que nos presenteou.
Que belos cachos de uvas...
Beijos meu bem.

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Janaina, Torga é sempre irresistívelmente belo... a poesia, os contos, os diários.
Veja o Cores e Palavras http://coresepalavras.blogspot.com/ tem surpresa para voce.
Kandandu

Lisarda disse...

Simple e profundo. Já me puse a pesquisá-lo e encontrei até videos dele.

Muadiê Maria disse...

Linda poesia.

Jana, qual é a palavra que está faltando lá em meu blog?
bjo

KImdaMagna disse...

...a Razão tomou conta de nossos sentimentos.
...a ligação à terra está lenta e agoniantemente a definhar.
...as plastificada e betonizadas urbes que construímos, vai levar ao vazio total.
O plano aqui em Portugal e desde o 25 de Abril de 1974 é criar ileteratos, que sabemos serem bem mais perigosos que os analfabetos.
Gente assim "produzida" (nada que Gasset não tenha avisado)não compreende Torga.

xaxuaxo

ADRIANO NUNES disse...

Janaína,


Que ótima postagem!



Abração,
A. Nunes.

Fernando Campanella disse...

Que relato mais emocionante, Janaína, que maravilha, um encontro lindo o qual tenho certeza iluminou sua trajetória literária. E que poema tão bem escrito, Torga tem uma fluência poética, imagens singelas, que muito aprecio. Grande abraço.

C. Cardoso disse...

Que bom compartilhar um momento de vida tão bonito.

Rosa Santana disse...

Falta um verso do poema do Torga, postado aqui. Sei porque gosto demasiadamente do texto!!

Então, na íntegra:

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Desculpem-me , se pareço intrometida, mas acho o poema muito lindo, muito significativo. Penso que "abortar"-lhe algum verso é como uma profanação!

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