domingo, 26 de outubro de 2008

Minúsculos assassinatos

(Foto de Alex de Jesus, neste site)

Blogueira recente, eu não conhecia o famoso drops da Fal (http://dropsdafal.blogbrasil.com/). Li há poucos dias uma entrevista da autora no Amálgama, visitei seu blog, comprei pela internet seu último livro (Fal Azevedo. Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite. Editora Rocco, 2008), acabei de lê-lo ontem, e o estou comentando hoje aqui.
Não sei o que há de autobiográfico no livro, até que ponto a história da principal personagem, a artista plástica Alma, se cruza com a da autora. Um exame apurado do blog talvez me mostrasse pistas, já que a blogueira escreve bastante sobre suas próprias experiências e sentimentos. Mas, como acho que o livro, para se sustentar literariamente, deve existir independente do blog, não vou lá pesquisar. Assim, não sei o quanto Alma tem de Fal.
Mas sei que Alma tem muito de toda uma geração de mulheres brasileiras, na faixa hoje dos quarenta, quarenta e poucos anos, filhas de pais que na década de 60/70 se tornaram hippies, viveram em comunidade, consumiram drogas, viraram a mesa, como se dizia à época, recusando o mundo que conheciam e propondo outro, tão irreal e confuso quanto bonito e ousado. Quem são essas filhas, que mulheres são essas que nasceram de pais alternativos mas se tornaram adultas na sociedade yuppie dos anos 90, quais as suas dúvidas, emoções, tragédias, realizações, frustrações, quais vidas, enfim, elas levam?
O livro mergulha na história de Alma, é pelo olhar dela que fazemos o percurso, percebemos o mundo. Não há cronologia nem ordem, como na vida a narrativa salta de um tempo a outro, de um estado a outro, de gatos a sapatos, de receitas (algumas ótimas) a choros convulsos, da gentileza de seu Lurdiano à dureza da Mãe, do riso mais frouxo ao IPTU não pago ou ao leite derramado, de e-mails dos amigos à bondade de Eliano, da fanta uva às filosofias e insônias, do litoral ao centro da cidade de São Paulo, passando por galerias, invernos, tevês a cabo, homens brutos, unhas pintadas, porres homéricos, computadores deficientes, mulheres masoquistas, dietas para emagrecer, muitos — muitíssimos — cães e gatos; de omeletes e pijamas de pezinho a meninas ruivas, das pequenas omissões aos persistentes, cotidianos, minúsculos assassinatos que todos nós cometemos e sofremos, vítimas algozes.
Tudo isso envolvido num humor irresistível, o mesmo humor inteligente que Fal exercita em seu blog: “O velório e o enterro de Eliano corriam bem, se é que se pode dizer uma coisa dessas sem ser fulminado por um raio”;”Estou curada do meu vício em revistas que dizem que não sou boa, magra, bronzeada, merecedora de amor, tesuda, simpática, ativa, bonita e boa profissional o suficiente”; “Não é o inverno, a segunda-feira, a falta de grana. Sou eu”,“Seu cachorro ama você para sempre, mesmo que nada, nada, nada tenha salvação e que, em parte a culpa seja sua”; “Ela gostava de mim aos quatro, aos sete, mas Deus sabe que a idade traz discernimento” são amostras colhidas ao acaso de um humor que serve não apenas para divertir, mas principalmente para estranhar, ironizar, criticar, desnudar o mundo louco, perigoso e invertido em que vivemos.
Não fosse esse humor imbatível, eu não teria agüentado ler o livro até o final. Pois Minúsculos assassinatos é uma narrativa sobre perdas, perdas gigantescas, um livro comovente sobre a dor, os limites da dor e a superação da dor, até onde isso é possível. Como avisa a autora: “... caso você não tenha percebido, isso não é um conto de fadas.” Compõe-se de duas narrativas intercaladas, duas vozes de Alma que contam e, às vezes, disputam a mesma história dilacerada, cortante. Os textos são curtos, saem aos trancos, aos soluços, meio desconjuntados, típicos textos de blog que, agrupados em capítulos também curtos (com nomes de comidas) servem muito bem a essa trama contemporânea de rupturas, vai-e-vens, desencontros.
A linguagem é desigual. Flutua entre o coloquial — onde, a meu ver, deveria ficar, pois aí a autora é mestre — e tentativas mal-sucedidas de linguagem mais elaborada, que destoam do restante do texto. Não sei, por exemplo, por que Fal evita o “pra”, usando sempre o “para”, mesmo no mais cotidiano dos diálogos. Imploro à autora: pelo amor de Deus, extirpe “o quão” do seu dicionário! Um ou outro capítulo não atinge o mesmo nível dos outros, como “Pé-de-moleque”.
Mas o ritmo de Minúsculos assassinatos é perfeito, o livro flui bem e nos prende pela jugular. Há capítulos belíssimos, bem escritos, bem pensados, que nos carregam a alma, como “Manteiga Aviação”, sobre o amor da filha por um pai impossível, “Café da manhã” — não vou dizer sobre o quê — e, numa dimensão mais leve, “Catupa”, sobre cães e seres humanos.
Minúsculos assassinatos envolve e emociona. O que eu mais gosto no livro é, face às misérias, desamores, ironias e horrores, sua capacidade de lançar um olhar solidário, cúmplice, caloroso ao mundo de hoje, oferecendo-nos generoso abraço que afaga, perdoa, consola. Há muito tempo não me lembro de chorar tanto ao ler um livro.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Sosígenes Costa

(Foto encontrada aqui)

[Baianos ligados às letras o conhecem, mas, fora da Bahia, quase ninguém ouviu falar dele. É um grande poeta brasileiro, cuja obra, no ano de seu centenário de nascimento, foi reunida em Poesia completa (Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 2001). Em vida, o baiano Sosígenes Costa (Belmonte, 1901- Rio, 1968) publicou apenas um livro, o primoroso Obra poética (1959). Muitos poetas, como o paulista José Paulo Paes, afirmaram que ler Sosígenes foi fundamental para a construção de suas obras. Eu gosto sobretudo de “Iararana”, longo poema narrativo do início da década de 30, inspirado na mitologia e no folclore, cheio de invenções e surpresas, que o poeta gostava de chamar "história de alma com bichos falantes". É ainda melhor que Cobra Norato, de Raul Bopp. Reservado, muito discreto em sua vida pessoal, Sosígenes Costa viveu na Bahia e depois no Rio de Janeiro, sempre escrevendo poesia, jamais cortejando críticos, muito menos eventos e mídia. Seguem pequeno trecho de “Iararana” e um de seus belos, sofisticados sonetos:]

(...)
“— Esta anta com cabeça de gente não era anta, meu neto.
Aquilo era cavalo com cabeça de gente.

Era cavalo da Oropa com feição de mondrongo.
Veio da Oropa o danado descobrir este rio.
Ele nasceu na Oropa num lugar muito bonito de lá.
Então um bicho com cabelo de cobra
avançou em cima dele
e ele teve que disparar daquela terra
teve que cair n’água
atavessou mar como quê
e foi se esconder na pontinha da Oropa.

E da ponta da Oropa
ele de novo timbum! Dentro dágua
e veio nadando e chegou neste rio.
Foi quando Romãozinho avistou o bicho entrando
e veio dizer à gente daqui, virado em dom Grilo.
A caipora quando viu o bicho na Ipibura
ficou de boca aberta.
Jabuti veio ver e ficou de boca aberta.
Boitatá não sabia o que era: ficou de boca aberta.
Saruê chegou e ficou de boca aberta.
Jundiá, quando soube, danou pro rio do Bu.
E os cachorros do rio se esconderam no mato
e quiseram dar flechada mas a flecha não pegou.


— Não pegou não, meu avô?[...]

O pavão vermelho
Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

sábado, 18 de outubro de 2008

Mais tempo do que eu poderia suportar

(Foto de Carmem Freitas)
Escrevo literatura porque acredito no truque. Ficção, pra mim, é mágica. Como diabos conseguiram serrar ao meio a mulher — juro que vi, com estes olhos que a terra há de comer! —, mas ela ressurge à minha frente inteira, reluzente sob holofotes, o maiôzinho escarlate salpicado de miçangas verde escuro? Hein? Como Alice entrou no espelho? E Harry Potter não é também o mais humano dos meninos? Escrevo literatura pra me jogar nesse mundo que embola tudo, tonteia, mundo sem começo, tempo, fim, caos de sangue, espuma e raios que me deixa completamente sem fôlego, aturdida. Encantada.

Mundo que me trouxe pânico, também. Abandonei a literatura. E se a mulher ficar serrada em duas pra sempre? Vai que Alice não volta do espelho, eu, hein! E se essa dor no meu peito de grama aumentar? E se eu nunca mais conseguir regressar a este mundo daqui, que pode ser miserável, violento e chato, mas afinal é onde meus dois pés estão fincados, ou ao menos sei onde está o chão?

Tempo demais longe dela. Tempo demais. Muito mais tempo do que o meu pobre peito de grama podia suportar. Não resisti à falta que a literatura me fazia. Era uma mesmice, um tentar conformar-se com uma dimensão do mundo, sabendo que atrás, acima, abaixo, sobretudo dentro há muitas outras mais. Uma falta, uma raiva, um desaponto, uma saudade que pediam , exigiam, sufocavam, enlouqueciam. Bom, loucura por loucura... melhor a criativa, he he.
Voltei. Recentemente. Agarrada às cordas da borda com toda a força ainda, que o precipício é fundo.
[Uma primeira versão deste texto foi postada aqui]

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Ítalo Calvino: A palavra escrita e a não-escrita


[Adoro este texto de Ítalo Calvino, sobre as relações entre o mundo concreto e o mundo escrito. Apresentado como palestra no New York Institute for the Humanities em 1983, foi publicado no The New York Review of Books, no mesmo ano. Calvino inverte os termos em que geralmente a questão é proposta, mostrando como o seu mundo, aquele em que se sente realmente à vontade, é o escrito, não o mundo concreto, o qual estranha. Abaixo, trechos:]

"Pertenço àquela parcela da humanidade — uma minoria em escala planetária, mas, creio, uma maioria neste salão — que passa a maior parte de suas horas úteis num mundo muito especial, um mundo feito de linhas horizontais, onde palavras seguem palavras, uma de cada vez, e cada frase e cada parágrafo ocupa seu lugar estipulado, um mundo talvez muito rico, ainda mais rico que o não-escrito, mas que, de qualquer forma, requer um ajuste especial, a fim de que possamos nos enquadrar nele. Quando passo do mundo escrito a este outro — este que chamamos atualmente de mundo, fundamentado em três dimensões e cinco sentidos, povoado por 4 bilhões de nossos semelhantes —, isso significa para mim repetir a cada vez o momento do meu nascimento, passar de novo por seu trauma, para criar uma realidade inteligível a partir de um conjunto de sensações confusas, para novamente escolher uma estratégia para enfrentar o inesperado sem ser destruído por ele.

Este renascimento, para mim, é marcado todas as vezes por ritos especiais que significam minha entrada numa vida diferente: o rito, por exemplo, de colocar os óculos porque sou míope e não preciso deles para ler, enquanto, para vocês, hipermétropes, o rito seria o oposto, tirar os óculos que usam para ler.
[...]
A essa altura vocês me perguntarão: se você diz que a página escrita é seu verdadeiro mundo, o único em que você se sente à vontade, por que quer deixá-lo, e por que se aventura nesse imenso mundo que não consegue controlar? A resposta é muito simples: para escrever. Porque sou escritor.
[...]
De certo modo, acho que sempre escrevemos sobre algo que não conhecemos, escrevemos para dar ao mundo não-escrito uma oportunidade de expressar-se através de nós. Mas, no momento em que minha atenção vagueia da ordem estabelecida das linhas escritas para a complexidade mutável que nenhuma frase consegue apreender totalmente, chego quase a entender que além das palavras há algo que as palavras poderiam significar.

Os poetas e escritores que admiramos criaram em suas obras um mundo que para nós parece o mais significativo, contrapondo-o a um mundo que também para eles carece de significado e perspectiva. Acreditando que seu gesto não era muito diferente do nosso, levantamos nossos olhos da página para sondar a escuridão."

[O texto completo em português está em: Ferreira, Marieta de Moraes e Janaína Amado. Usos e Abusos da História Oral. Rio: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000]

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Mário Faustino

(Colagem de Mário Faustino publicada aqui)

[Nascido em Teresina (1930), criado em Belém, morador quando adulto no Rio de Janeiro, Mário Faustino morreu muito jovem, aos 32 anos de idade. Cultíssimo, desde adolescente se interessou por literatura e idiomas, que estudou também nos Estados Unidos, graças a uma bolsa de estudos. No Rio, foi crítico literário do influente Suplemento Literário do Jornal do Brasil. Cosmopolita, irreverente, polêmico, afinado com poetas norte-americanos como Pound e Williams Carlos Williams, não poupava as “vacas sagradas” da literatura nacional. Defendia e criava poesia experimental, ousada, mas rigorosa. Publicou um único, maravilhoso livro de poemas, onde amor e morte são indissolúveis, O Homem e sua Hora, reeditado pela Companhia das Letras em 2003. Sou apaixonada por Mário Faustino desde muito antes dele se tornar cult. Dois exemplos de sua grande poesia:]

...
gestos de amor fizeram-se
— estrelas brilham —
se desfizeram.

Mãos postas, ovos gigantes postos
(estrelas brilham)
Entre as coxas do caos.
Estrelas brilham.
A gaivota fecunda a rocha
estrela, estrela
esteriliza o mar
um traço a mais no ar
peixe a menos no mar.
Gostos, demoras, fezes se refazem.
Contra as costas do cão
estrelas brilham
fases da lua, brisas
ilhas aventuradas, pescadores
dormentes de aventura.
A terra dura. A terra pemanece,
a terra flui, cortam-se umbigos, pelos
sobrevivem sobre os ossos, sobre carnes
aterradoras...
...


Divisamos assim o adolescente

Divisamos assim o adolescente
A rir, desnudo, em praias impolutas,
Amado por um fauno sem presente
E sem passado, eternas prostitutas
Velavam por seu sono. Assim, pendente
O rosto sobre um ombro, pelas grutas
Do tempo o contemplamos, refulgente
Segredo de uma concha sem volutas.
Infância e madureza o cortejavam,
Velhice vigilante o protegia.
E loucos e ladrões acalentavam
Seu sono suava, até que um deus fendia
O céu, buscando arrebatá-lo, enquanto
Durasse ainda aquele breve encanto.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Pescador de nuvens


(Foto originalmente postada aqui)
Ananias apoiou o peso da velha carcaça sobre a bengala e se concentrou na lenta, dolorosa descida até a cadeira de lona. O tremor nas pernas atrapalhou, o maldito tronco pendeu para frente e para trás, faltou fôlego e uma dor fina picou a base da coluna, fazendo-o gritar. Largou o corpo, mas calculou mal a distância. Caiu enviesado, a cabeça contra a borda de madeira, o corpo afundado na lona gasta do assento, a mão direita longe da bengala. Fechou os olhos, para se recuperar do esforço extremo de sentar-se e para disfarçar a humilhação por sua velhice, exibida em público, sob a claridade implacável da manhã.

Livrando-se dos chinelos, enfiou os pés com todo o gozo na areia. Lentamente, reabriu os olhos. Diante do mar, o feixe de rugas em que seu rosto se transformara desanuviou-se, o couro das bochechas afastou-se para os lados. Sorriu, iluminando o semblante. O mar! Nada o transportava tão imediatamente à infância quanto o cheiro, a luz, o céu, o sal do mar. Ananias regressou à casa branca da família, no meio da enseada, diante dos barcos de pesca. Pequeno ainda, pulava da cama assim que ouvia – era o único que ouvia – o andar muito leve do pai mal tocando o assoalho. Corria com seus passos miúdos até a porta da casa, recebia na cara o esplendor vermelho do sol e, contra esse sol, admirava a figura esguia do pai afastando-se rumo ao mar. O pai o proibira de misturar-se aos pescadores: Lugar de menino pequeno é dentro de casa, até hoje Ananias podia ouvir, como se ali ao seu lado na praia, a voz severa e pausada, a voz do pai. Da soleira da porta o menino encantava-se com o movimento dos pescadores na areia, a rolagem dos barcos para a água e o balanço sobre as ondas, primeiro as ondas pequenas e mansas, logo as enormes e raivosas, até pescadores e barcos se transformarem em minúsculos pontos tragados pelo horizonte. Da areia subia um vento de conchas que se misturava aos cabelos do menino e o entontecia de prazer. Enquanto isso a mãe, a dos cheiros marinhos, começava a aquecer...

Diante do mar, Ananias continuou refugiado na memória, desde alguns anos seu esconderijo, seu mundo preferido, o mais secreto, o mais amado. No mundo real – o do tempo dos relógios, por onde circulavam a tirana da filha, os netos barulhentos e egoístas e, em parte, também Etelvina, sua mulher – , no mundo real afundava em doenças e dores que lhe devastavam o corpo; perdia-se em meio a controles remotos microondas computadores celulares dvds dvis e outros malditos aparelhos que não sabia nem desejava usar, mas entupiam o apartamento da filha onde morava, atormentando-lhe a existência; no mundo real sentia-se um velho rejeitado, sem tesão audição força memória poder nem visão, arrastando um precioso saco de lembranças que ninguém estava interessado em conhecer.

.....a mãe, a dos cheiros marinhos, aquecia a casa com o calor do seu fogo, aceso no fogão de lenha. No passo miúdo, o pequeno Ananias corria para ela. Abraçava-lhe as pernas, quentes, macias. Sai daí, menino. Tá me atrapalhando, atrás dela o fogo vermelho ardia. A voz chegava suave, o menino insistia, rodeava a mãe, agarrava-lhe a saia, puxava-lhe a saia, pulava sobre os pés descalços, beijava-lhe as pernas. Por fim, ela achava graça: Menino mais tonto, ria balançando a cabeça, a lenha do fogo a estalar atrás. Carregava-o no colo. Ele então, coraçãozinho leve, leve, se agarrava depressa ao pescoço quente, deitava a cabeça no ombro e mergulhava o nariz nos cabelos encaracolados. Deixava-se ficar ali, quieto, narinas abertas, sentindo o cheiro marinho dela... o mesmo que às vezes ainda sente no ar, como agora, transportado pela lufada que faz girar o cata-vento de um menino à sua frente.

À medida que mergulhava na infância, construtor de um novo tempo antigo, Ananias percebia o mundo real vago, longínquo. Afligia-se com isso. Primeiro, algumas palavras recusaram-se a visitá-lo. Surpreendia-se parado no meio da sala, a frase suspensa no ar, incapaz de concluir o pensamento: Então aquele rapaz, o... o..... o.... o...... Muitas vezes Etelvina, sua mulher há mais de cinqüenta anos, ajudava-o, completando o nome esquecido. Mas aqueles lapsos se tornaram tão comuns que os netos até inventaram uma música para a ocasião, uma paródia cantada a plenos pulmões, pés batendo no assoalho e lágrimas pulando dos olhos, de tanto riso. Sinal de enfado com a mão descarnada, a significar um altivo Deixa pra lá!, Ananias retirava-se para o quarto, mortificado. Horas, às vezes dias depois, a palavra fujona voltava-lhe de súbito à memória. Tarde demais, ninguém estava interessado no assunto, que nem ele mesmo sabia mais qual era.

A princípio Etelvina e ele sorriam desses esquecimentos:
_ Minha velha, se prepare, que o seu velho aqui está ficando gagá! Etelvina balançava a cabeça em silenciosa negativa, beijava-o nos cabelos e tudo se esquecia, inclusive o esquecimento.

Depois os rostos do mundo real se esfumaçaram, desmaiados em bruma. De repente alguém saltava do meio do nevoeiro, cumprimentava-o com toda a intimidade, tapinhas nas costas, E aí, Ananias? Firme? Como vai a comadre Etelvina? Ele, parado, atônito, sem a menor idéia de quem se tratava. De nada adiantaram remédios, médicos nem exercícios para avivar a memória. Aos poucos Ananias transformou-se em um sujeito inconveniente, confundindo frases e comportamentos. A filha proibira-o terminantemente de jantar à mesa, quando houvesse convidados. Que me importa? Eu tenho horror a esses seus ricaços!, gritava à filha, bengala em riste, mortalmente ofendido.

O mundo real foi se tornando cada vez mais obscuro. Pior: à falta de identificar rostos, lugares, falas, corpos, gestos, cheiros, fotos, o mundo se tornou irreconhecível. Um lugar sem sentido. Ananias teve plena, embora breve, consciência disso certa madrugada, quando pulou da cama ao ouvir o andar muito leve do pai no assoalho, correu até a soleira da porta e.... ao invés dos pescadores com seus barcos coloridos na areia, um bando de desconhecidos o rodeavam, a gritar e gesticular. Conduzido com muito custo de volta ao quarto, só se deu conta da confusão que causara – quisera sair do apartamento pela janela, para alcançar a praia onde o pai pescava – ao perceber o alarme nos olhos de Etelvina. Os olhos de Etelvina, não os de sua mãe, não os de seu pai, idiota! Os olhos malva de Etelvina, os belos olhos malva de Etelvina pelos quais se apaixonara um dia, e, louco de amor, jurara adorar, alegrar e proteger para sempre, até que a morte os separasse! Esses mesmos olhos da amada, parceira da longa caminhada, observavam-no de muito longe, de algum ponto remoto, assutados, alarmados – reprovadores!

Ananias finalmente compreendeu. Como a árvore de raízes fortes e fundas que sempre fora, Etelvina permanecia arraigada ao mundo real. Já ele, pescador de nuvens, oscilava agora sobre ondas entre dois mundos, cada vez mais distante da terra do presente, cada vez mais próximo do horizonte, barqueiro solitário rumo ao pôr-do-sol, à linha circular em que tudo termina exatamente onde começou, o hoje e o ontem para sempre confundidos.

O coração pesou-lhe. O peito curvou-se, a cabeça também pendeu. Sentado no meio da cama de imbuia escura, a mesma que há mais de meio século era dele e era dela, Ananias chorou como criança. Comovida, Etelvina achegou-se, envolveu-o num abraço demorado, beijou-lhe testa e cabelos brancos. Ananias deixou-se ficar no ombro dela, lágrimas escorrendo e narinas bem abertas, em busca de um certo cheiro marinho.

("Pescador de Nuvens", de Janaína Amado - regras para uso: Creative Commons)

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