Indiferentes ao mundo em volta, interessados apenas em amar, Dandara e Pedro Lobisomem sequer notaram a presença do anjo e de Ananias Bom Conselho no Boqueirão. Enquanto Ananias matutava e o anjo suspirava, os dois corriam feli-zes pelo alto da mata, nus e de mãos dadas, em direção a uma gruta. Tentavam proteger-se da tempestade que há pouco desabara. Estranha tempestade! Começara mansinha, porém, de repente, sem que se soubesse como ou porque, pareceu o dilúvio. Tingiu os céus de vermelho, armou roncos, raios e trovões, essas zangas da natureza, inundou baixadas e rios, encharcou encostas e acabou expulsando para os abrigos, fossem eles tocas, cavernas, cascas, ninhos ou ocos de árvore, todos os habitantes da mata, inclusive Dandara e Pedro.
Os dois conheciam-se há apenas vinte e quatro horas. Vinte e quatro horas, um dia. Mas pareciam vinte e quatro meses! Ou vinte e quatro anos. Quem sabe não seriam vinte e quatro séculos? Pois quais calendários, afinal, medem vivências? Quais as medidas do amor? Aleluias, tartarugas, dinossauros e orquídeas, geleiras e borboletas, sociedades e rochas, guerras, rotinas e festas, quais relógios são capazes de medir as suas diferenças? O tempo da celebração é o mesmo do desespero? Com quantos, com quais minutos se constrói, enfim, uma paixão?
Filosofias à parte, o fato é que, vinte e quatro horas após se conhecerem, Pedro Lobisomem e Dandara se sentiam íntimos. Haviam esquadrinhado cada pedacinho de seus corpos, dos mil e um jeitos que ele aprendera na vida devassa pelo mundo, e agora, com engenho e arte, agora ensinava a ela. Jeitos que ela imaginara em fantasias, sob estrelas, durante as noites no Quibano, e com ele agora compartia. Pedro admirava a facilidade com que, inteiramente à vontade, como se não houvesse feito outra coisa na vida! ela compreendia os jogos do amor e ainda inventava outras brincadeiras, inovações que o deixavam enlouquecido de prazer.
[Início do terceiro capítulo de meu romance Dandara (S.Paulo: Ed. Maltese, 1995), que estou revisando e transformando em novela. O capítulo é dedicado ao amor entre a jovem quilombola Dandara e o também jovem minerador Pedro, conhecido como "Pedro Lobisomem", por razões aqui mantidas obscuras.]