quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Num rumorejo alegre, a senhora e a menina



Ibeji*

Num rumorejo alegre
as moças cuidadoras
aveludaram a senhora

arrumaram seus cabelos
escolheram seu vestido
e pintaram suas unhas
cor de rosa.

Foi assim adocicada
que a mulher sentou-se
frente ao bolo perolado
entre firme e desvanecido
em cascatas de açúcar.

As velas pulsando 80
e o batuque vigoroso dos corações
bordeando a mesa
atordoaram a menina.

Os mais atentos viram,
apesar da inexatidão dessa hora,
quando ibeji ventou sorrindo
roubando doces da mesa
e fazendo brotar dos olhos dela
a nascente de um rio.
Martha Galrão

*Ibeji - é uma divindade ioruba, sempre representada por gêmeos, presente nos rituais brasileiros do candomblé; às vezes aparece como crianças. Simboliza os opostos que se complementam, a dualidade que caminha junta.


Conheci os poemas de Martha Galrão no seu blog,
Maria Muadiê. Fiquei cativa dos seus poemas de forte influência afro-baiana, das misturas de temas abstratos com assuntos cotidianos, e das surpresas que sua sensibilidade de mulher nos apronta. “Ibeji” reúne isso tudo, além de me remeter, com ou sem razão — afinal, quem domina as próprias associações? —, ao conto “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector. Uma amostra da poesia sensível e contemporânea desta poeta baiana.
Imagem daqui.

domingo, 24 de janeiro de 2010

De vaidades e ignorâncias


Ele nasceu quase duzentos anos antes de Cristo, na África, em local próximo a Cartago, na atual Tunísia. Vendido como escravo a um senador romano, foi por este educado, tornando-se um dos grandes autores de teatro do seu tempo, em todo o Império Romano. Publius Terentius Afer (195/185 a.C. – 159 a.C), conhecido em português como Terêncio, escreveu seis peças de teatro – entre elas Andria, Eunuco e Hécira (A sogra) – até hoje representadas, pela graça, vivacidade e ironia dos textos.

Atribuem-se a Terêncio algumas frases ótimas:

Nada do que é humano me é estranho.

O mais próximo de mim sou eu.

Nada é agora dito que não tenha sido dito antes.

Esta última frase – criada, sempre é bom repetir, no século II antes de Cristo –, deveria ser lembrada toda vez que algum escritor ou grupo de escritores alardeasse estar criando algo novo, jamais visto, dito ou escrito. Esse tipo de bazófia – infelizmente muito repetida hoje, pois estamos em plena era da valorização da novidade pela novidade – expressa, em geral, apenas uma coisa: ignorância.

Como escritores, creio que devemos, sim, buscar ser criativos, não nos conformando em imitar o que já está aí feito. Mas sem pensar que somos os primeiros, os originais, os inéditos, os únicos. Nada é agora dito que não tenha sido dito antes. Ou, como expressa o ditado popular: Não há nada de novo sob o sol. Ou ainda, como concluiu no século XVIII o químico francês Antoine de Lavoisier: Na natureza nada se cria, tudo se transforma.
*Imagem daqui.
** A frase destacada de Terêncio até há pouco ilustrava o blog de meu e-amigo Mariano.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Glauco Mattoso


Considero-o um dos maiores poetas da língua portuguesa. É múltiplo e é ótimo em todas as atividades artísticas a que se dedica, da tradução à poesia à arte gráfica, em sua maneira original e abusada de conceber o mundo. O glaucoma transformou Pedro José Ferreira da Silva em Glauco Mattoso, poeta vidente. Indico com entusiasmo seu site oficial, apresentando abaixo dois de seus sonetos magistrais, aperitivos para uma obra vasta e variada, ainda em construção. Poesia refinada, que só se degusta com sabedoria e atenção:
Contrariado
Por ser o cedo tarde e o tarde cedo;
por ser tarde a manhã e a noite dia;
por ser gostosa a dor, triste a alegria;
por serem ódio amor, coragem medo;

Se o plágio é mais invento que arremedo;
se exprime mais virtude o que vicia;
se nada vale tudo que valia;
se todos já conhecem o segredo;

Por ser duplipensar barroco a língua;
por menos ter aquele que mais quer;
se a falta excede e tanto abunda a míngua;

Por nunca estar o nexo onde estiver,
desdigo o que falei e a vida xingo-a
de morte, se a cegueira é luz qualquer.


(Glauco
Mattoso, Poesia digesta)


Natal
Nasci glaucomattoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.

(Glauco Mattoso, As mil e uma línguas)
* Imagem do poeta, trazida daqui

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A menina e o mar


Desde pequenina no mar. Este cheiro de mar que entra dentro dela e a deixa tontinha de alegria, com vontade de rir sem parar. À noite, dorme embalada por ondas. A menina sabe que nasceu no mar. Sua mãe abriu as coxas, eram duas montanhas separadas, as coxas fortes da mãe. Ela, a menina, veio lá de dentro da mãedeslizando, de dentro do buraco da mãe escorregou direto no mar. Nasceu com duas lindas cornucópias enfeitadas de conchas, uma de cada lado da cabeça, e com um rabinho verde-brilhante, rabinho este que logo se despregou do seu corpo, sem dor nenhuma, e ganhou vida própria, virou outro ser, independente.
Nascida enfim, a menina ficou flutuando no mar, entre mariscos tentadores, corolas amarelas – que ela não resistiu e, instintivamente, começou a esfregar com todo o cuidado pelo rosto, embora de forma ainda desajeitada –, tartarugas gigantes, bolhinhas de ar, cardumes de peixes listados de rosa e creme, e também aquelas algas transparentes, algas translúcidas que pela primeira vez lhe apresentaram a luz do sol, o que ela, menina, simplesmente adorou.
Feliz. A depender da sua vontade jamais sairia dali, daquele mar que é o seu elemento, seu ambiente, sua morada natural: aquela leveza molhada em perpétuo movimento. Porém antes que pudesse entender o que acontecia, alguém a arrancou de lá, mãos a puxaram com força – ainda viu de relance as duas montanhas da mãe se fechando para sempre. E ela, a menina, teve de começar outro aprendizado, difícil e lento, o da sobrevivência no novo ambiente. Duro, imóvel, infinitamente mais sem graça: a terra.
Sempre que pode a menina veste seu maiôzinho vermelho, que de tão gasto já está até meio pequeno pra ela e que tem um furo nas costas, segura a mão do primeiro adulto que aparece e se manda pra praia, pra areia. De braços abertos corre para abraçar o mar onde nasceu, e ali mergulha. Radiosa. Não se importa nem um pouco com os empurrões dos meninos chatos que pulam na beira, nem com os trambolhões das ondas gigantes. Ao contrário, ama ser embrulhada pelas águas, feito estrela-do-mar, feito sargaço. Esse é um brinquedo que nunca termina, recomeça a cada onda, maravilha.
Tudo ali conhece e ama, do sal da água ao picolé de fruta ao balde e às forminhas, até as conchas minúsculas que gostam de se enterrar na areia molhada, mas ela, sabida, recolhe todas, para enfeitarem as torres do seu castelo de areia. Nesse castelo mora Capitulina, a princesa-sereia prisioneira, que Floro, o príncipe-tubarão, logo salvará.
Não é assim que acontece, não, diz o adulto ao lado, ao ouvir o relato dela sobre seu nascimento no mar. — Você já está ficando grande. Tem de parar com isso, aprender como a vida é.



A menina enxerga o rosto duro do adulto, parecido com o da sua professora. Põe as mãos em concha sobre a testa, aperta os olhinhos devido à luz intensa do sol, e sorri. Com toda a paciência do mundo, explica mais uma vez o que o adulto não quer, não pode mais aprender:


Mas é assim que eu sinto.

E dispara rumo às ondas do mar onde nasceu, barrada de espuma.


[Na falta de uma foto capaz de expressar a ligação da menina com o mar, fica esta mesmo, a única que tenho sobre o tema. Se eu ainda fosse a menina, saberia colorir este mar...]

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