Na cidade de Iagos, interior do Brasil, moram três lobisomens.
O mais velho é meu pai. Está vivo há tanto tempo que não se lembra mais onde nasceu nem quem eram seus pais. De vez em quando, ele é assombrado por visões estranhas, que lhe provocam fortes dores de cabeça e o deixam angustiado. Nessas ocasiões, vislumbra ao longe florestas perdidas no cume de montanhas, altíssimas montanhas nevadas. É um lugar encantado, lugar isolado, onde não existem pessoas, cores nem ruídos. Há apenas silêncio, tempo suspenso no ar. No meio da clareira de pinheiros, à luz da lua, ele vê uma loba lambendo carinhosamente um bebê deitado no chão. Meu pai sente que essas visões de alguma forma se relacionam às suas origens, mas não pode garantir que a loba seja sua mãe, a minha avó.
O pai apareceu em Iagos em meados do século XVIII, quando isto aqui era terra de garimpo e o ouro dos rios enlouquecia a imaginação dos homens. A riqueza era tanta, diziam, que até no papo das perdizes se encontravam grãos de ouro e pedras preciosas. Ávidos de fortunas, confiantes no futuro, mineradores de todas as partes do mundo acorriam para se enfiar neste buraco, de onde muitos nunca mais saíram. Iagos nasceu da ganância, filha dileta da luxúria, como até hoje o velho padre Zezinho gosta de pregar em seus sermões aos domingos, esmagando-nos a todos de culpa, devido a esse pecado original.
Meu pai mudou-se para Iagos porque sempre gostou do garimpo. A agitação e o perigo o fascinam, ele adora o burburinho, o esbanjamento, a violência, a confluência de sonhos, as mulheres desgarradas e aventureiras, as lutas e as loucas histórias dos mineradores. Até hoje, mais de duzentos anos depois, quando o ouro em Iagos se tornou apenas tênue, longínqua, orgulhosa lembrança dos bons tempos que se foram, até hoje ele não consegue resistir. Toda madrugada levanta-se, solitário, saindo a esburacar os bancos de areia dos rios, em busca de gramas de ouro que não mais existem e que ele sabe que não mais existem. Várias vezes o encontrei nessa procura inútil, cabeçorra enfiada na bateia, a separar com cuidado cascalhos que os olhos cansados não conseguem distinguir.
Acho que busca um mundo. Sente saudade da juventude, quer recuperar séculos que se passaram e quase apagaram o passado, revive a nostalgia de um mundo antigo, cujos ecos se encontram nas douradas catedrais, no casario colonial e na conformação irregular dos be¬cos de Iagos, mas se escondem também no ínimo de si mesmo, em sua consciência. Lobisomens são mesmo desse jeito. Sofrem crises monumentais de saudade, pois há mais recordações dentro deles do que possibilidade de memória. Desse conflito brota o sentimento do passado incompleto e irresolvido, provocando as dores de cabeça e a angústia das visões. Nada mais são, essas visões alucinadas, do que lembranças de tempos idos e queridos que a memória não consegue restaurar.
Ainda muito jovem, recém-chegado a Iagos à época da mineração, meu pai apaixonou-se por Dandara, filha caçula de um escravo fugido morador no Quibano, quilombo aqui perto, na Serra das Esmeraldas. Reservado a respeito de intimidades, o pai nunca me deu a ousadia de uma única confidência sobre esse grande amor antigo. Não importa. Sei de tudo por essa lenda de Iagos, até hoje contada pelos velhos cegos às crianças, que a escutam sem respirar, olhinhos brilhantes de prazer:
[Primeiro capítulo do meu romance "Dandara" (S.Paulo, Maltese, 1994, edição esgotada). Estou selecionando partes dele para integrar um livro que ando preparando. ]
O mais velho é meu pai. Está vivo há tanto tempo que não se lembra mais onde nasceu nem quem eram seus pais. De vez em quando, ele é assombrado por visões estranhas, que lhe provocam fortes dores de cabeça e o deixam angustiado. Nessas ocasiões, vislumbra ao longe florestas perdidas no cume de montanhas, altíssimas montanhas nevadas. É um lugar encantado, lugar isolado, onde não existem pessoas, cores nem ruídos. Há apenas silêncio, tempo suspenso no ar. No meio da clareira de pinheiros, à luz da lua, ele vê uma loba lambendo carinhosamente um bebê deitado no chão. Meu pai sente que essas visões de alguma forma se relacionam às suas origens, mas não pode garantir que a loba seja sua mãe, a minha avó.
O pai apareceu em Iagos em meados do século XVIII, quando isto aqui era terra de garimpo e o ouro dos rios enlouquecia a imaginação dos homens. A riqueza era tanta, diziam, que até no papo das perdizes se encontravam grãos de ouro e pedras preciosas. Ávidos de fortunas, confiantes no futuro, mineradores de todas as partes do mundo acorriam para se enfiar neste buraco, de onde muitos nunca mais saíram. Iagos nasceu da ganância, filha dileta da luxúria, como até hoje o velho padre Zezinho gosta de pregar em seus sermões aos domingos, esmagando-nos a todos de culpa, devido a esse pecado original.
Meu pai mudou-se para Iagos porque sempre gostou do garimpo. A agitação e o perigo o fascinam, ele adora o burburinho, o esbanjamento, a violência, a confluência de sonhos, as mulheres desgarradas e aventureiras, as lutas e as loucas histórias dos mineradores. Até hoje, mais de duzentos anos depois, quando o ouro em Iagos se tornou apenas tênue, longínqua, orgulhosa lembrança dos bons tempos que se foram, até hoje ele não consegue resistir. Toda madrugada levanta-se, solitário, saindo a esburacar os bancos de areia dos rios, em busca de gramas de ouro que não mais existem e que ele sabe que não mais existem. Várias vezes o encontrei nessa procura inútil, cabeçorra enfiada na bateia, a separar com cuidado cascalhos que os olhos cansados não conseguem distinguir.
Acho que busca um mundo. Sente saudade da juventude, quer recuperar séculos que se passaram e quase apagaram o passado, revive a nostalgia de um mundo antigo, cujos ecos se encontram nas douradas catedrais, no casario colonial e na conformação irregular dos be¬cos de Iagos, mas se escondem também no ínimo de si mesmo, em sua consciência. Lobisomens são mesmo desse jeito. Sofrem crises monumentais de saudade, pois há mais recordações dentro deles do que possibilidade de memória. Desse conflito brota o sentimento do passado incompleto e irresolvido, provocando as dores de cabeça e a angústia das visões. Nada mais são, essas visões alucinadas, do que lembranças de tempos idos e queridos que a memória não consegue restaurar.
Ainda muito jovem, recém-chegado a Iagos à época da mineração, meu pai apaixonou-se por Dandara, filha caçula de um escravo fugido morador no Quibano, quilombo aqui perto, na Serra das Esmeraldas. Reservado a respeito de intimidades, o pai nunca me deu a ousadia de uma única confidência sobre esse grande amor antigo. Não importa. Sei de tudo por essa lenda de Iagos, até hoje contada pelos velhos cegos às crianças, que a escutam sem respirar, olhinhos brilhantes de prazer:
[Primeiro capítulo do meu romance "Dandara" (S.Paulo, Maltese, 1994, edição esgotada). Estou selecionando partes dele para integrar um livro que ando preparando. ]