sábado, 21 de fevereiro de 2009

Eugénio de Andrade

O Desejo


O desejo, o aéreo e luminoso
e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era o céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta - o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.

(Eugénio de Andrade, O Outro nome da terra, 1988)

Três ou quatro sílabas

Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.

(Eugénio de Andrade, Véspera da Água, 1973)

Que fizeste das palavras

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

(Eugénio de Andrade, Matéria solar, 1980)

Eugénio de Andrade (1923-2005) é um dos maiores poetas do século XX, e um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos (não por acaso um dos meus preferidos!). Nascido em Póvoa de Atalaia com o nome de José Fontinhas Rato, mudou-se para Lisboa aos dez anos de idade, com a mãe, separada do pai. Em 1943 transferiu-se para Coimbra, onde conviveu com intelectuais como Miguel Torga e Eduardo Lourenço, voltando depois a Lisboa. Contudo, foi homem sedentário, de poucos deslocamentos, viajando através da literatura: instalado em 1950 na cidade do Porto – que considerava a sua cidade, e da qual foi cidadão honorário -, aí viveu cinquenta e cinco anos, até morrer. E, inspetor administrativo do Ministério da Saúde, exerceu a mesma função durante trinta e cinco anos, até aposentar-se, por haver sempre se recusado a prestar concursos para promoção. Fez sólidas amizades entre os escritores, mas, dedicado à literatura, não participou de vida literária nem social. Recebeu prêmios importantes (para os quais não se inscreveu), como o Camões (2001) e o Pen Clube (1984). Existe hoje em Portugal uma fundação dedicada ao escritor.

Eugénio de Andrade foi sobretudo poeta, autor de numerosos livros escritos ao longo do tempo, entre eles os aqui nomeados sob cada poema, e mais, entre outros, As Mãos e os Frutos, Mar de Setembro, Escrita da Terra, Limiar doa Pássaros, Memória Doutro Rio, Matéria Solar, Oficio da Paciência, O Sal da Língua, Os Lugares do Lume e Os Sulcos da Sede. Escreveu também (pouca) prosa, como À Sombra da Memória, além de dois livros para crianças. Foi tradutor, sendo ele próprio um dos escritores portugueses mais traduzidos. Sua obra necessita urgentemente de republicações, reedições, seleções e estudos no Brasil.
* Imagem daqui

12 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Janaína,

Bela postagem!


Adriano Nunes.

Anônimo disse...

eugénio de andrade foi meu vizinho. adoro-o como ele adora os gatos

Anônimo disse...

Graças ao que disse aqui vou, agora, procurar conhecer melhor o trabalho desse autor.

Abraços Janaina!

Muadiê Maria disse...

Janaína, não tenho nenhum livro dele, mas sou apaixonada por sua poesia.
Essa me faz chorar:

O LUGAR DA CASA

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Jana, adoro suas visitas em meu blog.
um beijo

Dalva Nascimento disse...

Janaína, adoro Eugenio de Andrade. Um post com textos escolhidos e um ótimo relato sobre o escritor.
Obrigada pelo post.

Beijos.

anjobaldio disse...

Maravilhosa postagem. Grande abraço.

AC disse...

Fiquei impressionado - tanto pela qualidade do poeta quanto pelo meu desconhecimento dele. E pior, tamanha ignorância não será certamente incomum. Vou procurar mais coisa dele. E buscar mais coisas q vc me tenha para contar... Obrigado!

Bibliotecária de Babel disse...

belíssimos poemas!

valter ferraz disse...

Janaína,
grato pelo selinho da PIER FM alí na sidebar. Amigos assim não tem preço, pro resto tem o mastercard, não é mesmo?
Beijo, menina

Cris disse...

Oi, Janaína,

Conheço pouco da obra de Eugénio de Andrade.Vou procurar.

beijo, menina.

Ana Cecília disse...

Obrigada, Janaína, por dividir conosco estes tesouros.
Nas férias, li Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, organizada por Eugénio de Andrade e presente de uma amiga de Porto.
Que coisa essencial, vibraqnte, nutritiva, que é ler boa poesia!
estive dispersa - tempo de estio - e estou voltando aos poucos, matando a saudade de visitar espaços como o seu, que viram amigos pessoais!

Unknown disse...

Obrigada por me apresentar a tão bela poesia! Vou pesquisar a sua obra, gostei muito.
beijos

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