quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Meu desejo secreto para 2010

É o meu desejo pessoal mais fundo, o mais secreto, agora escancarado: em 2010, quero virar escritora de literatura. Alguns de vocês, porque são gentis e amigos, me dirão que já sou uma, que tenho livros publicados, que me leem, que gostam do que escrevo, etc. Sem modéstia: não escrevo mal, às vezes escrevo bem, resultado de algum talento e de muito exercício, pois passei a vida inteira escrevendo, como estudante ou professora. Sem dúvida é por escrito que melhor me comunico.

Mas, apesar de já ter publicado um romance e três livros para crianças, e de ter escrito alguns contos, além de diversos livros de história do Brasil, eu ainda não me sinto uma escritora de ficção. Onde em mim aquele compromisso interior, aquela chama que faz alguém largar tudo para escrever imaginações, eleger a escrita de ficção sua prioridade absoluta na vida, onde aquela necessidade doida de criar ou morrer, que leva a pessoa a encontrar disciplina e superar faltas? Onde a gana e a garra, onde a fé absoluta na própria arte, no poder transformador da minha escrita? Onde olhar/viver a vida e nela enxergar, a cada minuto, a outra vida, aquela criada pela livre associação de idéias e sensações e pela imaginação do artista?

Procuro isso em mim, e não encontro. Escrevo de forma intermitente, sinto uma preguiça mortal para escrever, não gosto do que escrevo — paro no meio —, me disperso entre várias coisas, não termino meus escritos com vistas à publicação… Cadê a escritora de ficção? Ela não se realiza!

Quando, porém, em alguma madrugada silenciosa, asculto a mim mesma, quando colo o ouvido atentamente sobre meu coração e fico muda, encontro, sim, a escritora. Entro em contato com meu próprio desejo de escrever, minha crença absoluta na imaginação, meu olhar criativo, sensível sobre o mundo, minha alegria em ler, em criar…

A escritora de ficção existe em mim escondida, opaca, embotada, em segundo plano. O quê a impede de desabrochar, exibir-se, realizar-se? Volto ao meu coração, escuto-o de novo, em busca da resposta. Ela vem direta, não deixa dúvida: o medo. Medo do quê? De tantas coisas! De errar, falhar, não corresponder à minha própria e altíssima exigência, ser criticada, enlouquecer… tantas coisas, que me confundem. E por aqui eu paro, pois isto é um blog, não um consultório psicanalítico.

Neste último dia de 2009, porém, de uma coisa eu sei: meu desejo de virar uma escritora de ficção tornou-se avassalador. Tem alguém aqui com imensa vontade de em 2010 escrever histórias imaginadas, de fazer disso o seu compromisso e o seu prazer maiores, o centro da vida nos próximos doze meses. 2010 será, sim, o ano em que libertarei a escritora, para que sem vergonha nem limites nem bom senso corra pelas areias do mundo. É o meu desejo.
[Imagem daqui]

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Neste Natal, um conto de Miguel Torga

[Meus amigos: para vocês, nesta época de Festas, envio um abraço caloroso e ofereço este conto de um dos meus escritores preferidos, o português Miguel Torga. Para mim, este pequeno conto exala essências do Natal, como simplicidade, acolhimento, mistério, epifania. Vale a pena entregar-se à sua magia.]

Um Conto de Natal

Miguel Torga

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

* Conheci este conto de Torga quando ainda era adolescente, e me encantei com ele. Reencontrei-o recentemente num e-mail enviado por Amélia Pais, a quem agradeço.

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