[Para quem tá chegando agora, sugiro ler primeiro A menina e o menino (I)]
Este menino que veio do mar é um espanto. Não é como ela. Não se comporta, não fala baixo, não engole choro, não é ordeiro nem certinho, não brinca com bonecas, não come de boca fechada, não segura direito a colher nem age por trás, escondido. Nada disso. Este menino faz um barulho danado, dá beijo em todo mundo, atira os óculos do avô pela janela do apartamento e fica depois na ponta dos pés, espiando pra ver onde caíram, este menino trepa nos móveis, corre pela casa, desce correndo as escadas do prédio, empurra as pessoas, com a maior alegria espalha mel e farinha e ovos quebrados pelo chão da cozinha, ri muito, desenha nas paredes, briga, levanta a saia da empregada e sai em disparada, tranca-se no banheiro e esmurra a porta por dentro, chora alto .... Já mostrou pra ela, menina, que tem pinto e faz xixi em pé, e quer porque quer ver a xoxota dela.
Este menino é um enigma. Ela sente-se irresistivelmente atraída para ele, que brilha como o sol e ri como o mar, que dá beijos e abraços nas pessoas, enlaçando-as pelo pescoço. Ele sabe tudo o que ela ignora, ele transgride todas as normas a que ela, obediente, se submete por medo. Encantada e amedrontada, a menina não tem respostas.
A cada dia, sente-se mais ameaçada. O que este menino metido está fazendo aqui? Esta casa antes era só pra mim! Por que vovó agora anda toda derretida pra ele? Por que ele bate em mim?
O menino também sente ciúmes. E descobre rápido que é bem mais forte do que ela. Passa a chamá-la para a briga, a todo momento. Bate nela com força e dedicação, puxa-lhe os cabelos, cospe na sua cara, dá-lhe rasteiras, empurra-a contra a parede, arranha-lhe o corpo. Ela resiste como pode, mas perde todas. Impotente, chora, várias vezes por dia. Chora de dor, raiva, abandono, solidão, ciúme, impotência, humilhação. Joga-se na cama vazia dos avós, e chora. Nunca se sentiu tão infeliz na vida. Pela primeira vez, pensa em morrer.
As brigas constantes das crianças provocam confusão entre os adultos da família. Irritado por ver a filha apanhar todos os dias, o pai da menina tira satisfação do menino, e acaba por dar-lhe uns safanões. A mãe do menino não aceita ver seu filho tratado assim. Os dois discutem feio, o avô das crianças interfere, porém suas palavras pioram a situação. Assustada, a bebezinha começa a berrar, o que exaspera os adultos.
E o menino bate, e a menina chora. E a menina chora, e o menino bate, dia e noite, noite e dia. Dentro do apartamento onde todos se apertam, a tensão torna-se insuportável. Sufoca. A menina começa a chamar pela mãe. Se minha mãe estivesse aqui, isso tudo não acontecia. A gente tava morando na nossa casa.
O menino parte enfurecido para cima da menina, que foge correndo. Ele consegue encantuá-la contra a parede da sala. Ofegantes os dois, olham-se. A menina se apavora, pois vê na mão dele um cano de ferro, prestes a ser arremessado contra ela. Instintivamente, protege o rosto com os braços, encolhe-se toda à espera da dor ... que não vem. Abre os olhos, enxerga a tia imobilizando o menino, gritando para ela:
— Bate nele! Agora! Quero ver você bater nele!
Assustada, a menina sente muita vontade de fazer xixi, chora, quer fugir dali. Mas a tia insiste:
— Você tem de bater nele! Vamos, eu estou segurando ele, não tem perigo. Pode bater! Já!
E, como a menina ainda vacila:
— Se você não bater agora nele, eu é que bato em você!
A menina reúne toda a força que não sabe que tem, força que brota do ódio, do desamparo, do desejo de vingança, da rejeição,do ciúme, do instinto de sobrevivência, e parte pra cima do menino. Ele tenta chutá-la, mas a mãe imobiliza suas pernas, enquanto a menina bate, bate, bate, cospe, chuta, xinga, dá cabeçadas, bate, bate, bate, bate, cada vez mais forte, com uma fúria que nunca soube possuir. Está adorando. Sente-se triunfante, vingada, poderosa.
Bate até o menino chorar alto, que é também quando ela se cansa. A tia vai soltando o menino aos poucos. Surpreso, humilhado, doído, ele chora. A mãe abraça o filho com carinho e o beija, afagando-lhe os cabelos molhados de suor.
No dia seguinte, o menino ensaia nova surra. Mas, esperta e poderosa, a menina depressa lhe arranha o rosto. Ele recua.
Deste momento em diante, a menina e o menino tornam-se inseparáveis. Juntam forças, manhas e saberes. Não brigam. Aliam-se os dois contra o resto do mundo. Combatem e vencem todas as maldades. Juntos são rei e rainha, índia e cowboy, índio e índia, professora e aluno, desbravadores do velho oeste, alvos aterrorizados das injeções do Seu Petrônio da Farmácia, sol e lua, telespectadores, leitores e personagens de histórias em quadrinhos, cinéfilos, namorados, concha e água-viva, astronautas, vítimas de caxumba, sarampo e catapora, descobridores de fundos de mares e longínquas galáxias, fanáticos colecionadores de figurinhas, vendedores de distintivos do Partido Comunista e de papel alumínio retirado dos maços de cigarro, cúmplices de artimanhas, frequentadores de parques de diversão... Unidos contra o resto do mundo, são imbatíveis. Um sempre de olho no outro.