domingo, 31 de maio de 2009

O lobisomem de Iagos


Na cidade de Iagos, interior do Brasil, moram três lobisomens.
O mais velho é meu pai. Está vivo há tanto tempo que não se lembra mais onde nasceu nem quem eram seus pais. De vez em quando, ele é assombrado por visões estranhas, que lhe provocam fortes dores de cabeça e o deixam angustiado. Nessas ocasiões, vislumbra ao longe florestas perdidas no cume de montanhas, altíssimas montanhas nevadas. É um lugar encantado, lugar isolado, onde não existem pessoas, cores nem ruídos. Há apenas silêncio, tempo suspenso no ar. No meio da clareira de pinheiros, à luz da lua, ele vê uma loba lambendo carinhosamente um bebê deitado no chão. Meu pai sente que essas visões de alguma forma se relacionam às suas origens, mas não pode garantir que a loba seja sua mãe, a minha avó.
O pai apareceu em Iagos em meados do século XVIII, quando isto aqui era terra de garimpo e o ouro dos rios enlouquecia a imaginação dos homens. A riqueza era tanta, diziam, que até no papo das perdizes se encontravam grãos de ouro e pedras preciosas. Ávidos de fortunas, confiantes no futuro, mineradores de todas as partes do mundo acorriam para se enfiar neste buraco, de onde muitos nunca mais saíram. Iagos nasceu da ganância, filha dileta da luxúria, como até hoje o velho padre Zezinho gosta de pregar em seus sermões aos domingos, esmagando-nos a todos de culpa, devido a esse pecado original.
Meu pai mudou-se para Iagos porque sempre gostou do garimpo. A agitação e o perigo o fascinam, ele adora o burburinho, o esbanjamento, a violência, a confluência de sonhos, as mulheres desgarradas e aventureiras, as lutas e as loucas histórias dos mineradores. Até hoje, mais de duzentos anos depois, quando o ouro em Iagos se tornou apenas tênue, longínqua, orgulhosa lembrança dos bons tempos que se foram, até hoje ele não consegue resistir. Toda madrugada levanta-se, solitário, saindo a esburacar os bancos de areia dos rios, em busca de gramas de ouro que não mais existem e que ele sabe que não mais existem. Várias vezes o encontrei nessa procura inútil, cabeçorra enfiada na bateia, a separar com cuidado cascalhos que os olhos cansados não conseguem distinguir.
Acho que busca um mundo. Sente saudade da juventude, quer recuperar séculos que se passaram e quase apagaram o passado, revive a nostalgia de um mundo antigo, cujos ecos se encontram nas douradas catedrais, no casario colonial e na conformação irregular dos be¬cos de Iagos, mas se escondem também no ínimo de si mesmo, em sua consciência. Lobisomens são mesmo desse jeito. Sofrem crises monumentais de saudade, pois há mais recordações dentro deles do que possibilidade de memória. Desse conflito brota o sentimento do passado incompleto e irresolvido, provocando as dores de cabeça e a angústia das visões. Nada mais são, essas visões alucinadas, do que lembranças de tempos idos e queridos que a memória não consegue restaurar.
Ainda muito jovem, recém-chegado a Iagos à época da mineração, meu pai apaixonou-se por Dandara, filha caçula de um escravo fugido morador no Quibano, quilombo aqui perto, na Serra das Esmeraldas. Reservado a respeito de intimidades, o pai nunca me deu a ousadia de uma única confidência sobre esse grande amor antigo. Não importa. Sei de tudo por essa lenda de Iagos, até hoje contada pelos velhos cegos às crianças, que a escutam sem respirar, olhinhos brilhantes de prazer:

[Primeiro capítulo do meu romance "Dandara" (S.Paulo, Maltese, 1994, edição esgotada). Estou selecionando partes dele para integrar um livro que ando preparando. ]

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Tocando a vida


Não eram lembranças. Não havia nomes, personagens, enredos, histórias, nada que ela pudesse identificar.
Eram lampejos. Raios que irrompiam de repente em sua vida, dentro da escola, no banho, lavando louça, no trabalho, onde estivesse surgiam e sumiam aqueles clarões, estilhaços, sem que ela soubesse que coisas eram.
Aconteceu assim durante anos, desde pequena, vida afora. Como pesadelos se repetiam, tudo muito rápido mas tão intenso e verdadeiro e doloroso que não era possível fazer de conta que não existiam.
Achou que seriam defeitos dos seus olhos estrábicos. Certa vez, deprimida, convenceu-se de que eram alucinações, provas de que, afinal, sempre fora meio maluca. Arritmia, epilepsia, esquizofrenia? Os médicos lhe disseram que não. Se nenhuma das anteriores, o quê, então? Ao longo da vida buscou explicações para aqueles terremotos internos. “São bobagens, de um jeito ou de outro todo mundo sente alguma coisa parecida, não liga não”, um namorado meigo lhe soprou certa vez ao ouvido, acalmando-a com carinhos. Deixou-se convencer, afinal o namorado era ótimo, beijava como ninguém, e ela não podia mesmo ficar presa a uma besteira sem nome, precisava tocar a vida.
Tocou a vida o melhor que pôde. Casamentos, filhos, trabalho, divórcios, falta de grana, mudanças, sonhos feitos, desfeitos, refeitos, tombos, fantasias. Houve época em que, feliz, quase se esqueceu dos lampejos que em centésimos de segundo faziam tudo tremer à volta, destroçando seu mundo.
Os truques da experiência lhe ensinaram a conviver com aqueles sem nome que a atormentavam. Apertava bem os olhos, para não cair segurava com força a primeira coisa sólida ao redor, respirava fundo algumas vezes, e... pronto. Eles se iam, deixando no ar apenas seu rastro passageiro: um risco de fogo, uma centelha ou fenda muito estreita, um arrepio... Causavam também, é verdade, desconforto profundo, persistente sensação de mundo deslocado, de vertigem, de coisas completamente fora de lugar, mas contra isso nada podia fazer, a não ser empurrar tudo para o fundo, bem para o fundo e para dentro, e ir tocando a vida.
Um dia a vida a tocou. Viu-se diante de tantos impasses, becos sem saída, cofres cujos segredos perdera, portas cerradas, fracassos, que decidiu buscar apoio.
Encontrou um grupo, formado por pessoas que, como ela, procuravam ajuda para situações de vida difíceis. Dirigido por profissionais, este grupo, concentrado em uma fazenda por dias, submeteu-se a um trabalho psicológico. Por meio de técnicas variadas, cada um do grupo buscava identificar em si os padrões emocionais e de comportamento que lhe atrapalhavam a vida, para superá-los.
Ela se entregou totalmente à experiência, a cada exercício deixava cair paredes, véus, punhais, armadilhas, espelhos, ataduras, escudos, petardos, a cada dolorosa descoberta deixava entrar ar fresco no porão, raios de lua iluminando o rio, respingos de cachoeira nos cabelos, pelo corpo sensações de prazer, insuspeitas renovações internas, descobrimentos de mundos.
No penúltimo dia, um nervosismo extremo, uma urgência de algo que não sabia o que era. Angustiada, andou de um lado para outro na fazenda inteira sem encontrar lugar, andou tudo de novo mas não descobriu o seu lugar, dor infernal no peito, no corpo inteiro, vontade incontrolável de chorar... E aqueles lampejos, aqueles tremores, aquelas descargas elétricas internas que por falta de nome chamava raios, relâmpagos, terremotos, tudo voltou com força, diversas vezes, uma descarga após a outra, quase sem intervalo.
Desta vez, não quis chorar na frente dos outros nem com os outros. Abandonou o trabalho do grupo, enfiou-se sozinha no quarto, jogou-se na cama, chorou como nunca pensou ter lágrimas. Exausta, adormeceu.
E sonhou.
Ao acordar, seguindo orientação dos psicólogos, imediatamente anotou o sonho. Anotou tudo sem pensar, escrevendo muito rápido para não deixar fugir as imagens. Ao terminar, largou o caderno. Sentiu necessidade de tomar banho.
Cabelos lavados, fresca, sentou-se sozinha na varanda, para ler o próprio sonho. Quase desmaiou. Não teve nenhuma dúvida: aquilo acontecera com ela! Não era apenas um sonho, era uma memória... recuperada! Seu texto:

“Sonho estranho. Uma menina pequena, com 3, 4 anos, brinca numa sala. Brinquedos espalhados pelo chão e sofá. A menina está descalça, só de calcinha. Feliz, entretida com os brinquedos. Tem cabelo cacheado.
Cena 2: a mesma menina, deitada sobre o sofá, de frente para a parede. Deitado atrás dela, encostado nela, um homem. O sonho é da perspectiva da menina. Ela não vê o homem. Ela sente o homem. A menina está um pouco assustada, mas não muito, porque conhece aquele homem.
Cena 3: Na mesma sala anterior, uma conversa maluca entre a mesma menina e seu cérebro adulto. Isto é: o cérebro é o intelecto da menina depois que ela se tornou adulta. Menina e intelecto têm a seguinte conversa:
M – Intelecto, deixe de racionalizar, de se enganar! Quem viveu esta cena não foi você, adulta, fui eu, criança!
I – Então me conte como você viveu — você nunca me contou!
M – Eu sou pequena. Então, o meu coraçãozinho é pequeno. E ele nem fica escondido como o seu, de adulta, não. Na verdade, eu inteirinha sou um coração, um coração que anda, um coração que brinca, aqui, em toda a sala.
I – Ah, é? E o que foi que lhe aconteceu? Conta pra mim!
M – Eu tava brincando toda felizinha na sala, só de calcinha, quando de repente, POU! O meu pai veio com um cacete e... POU! Atirou o cacete em cima de mim, bem na minha cabeça-coração, e eu, puft! Caí desmaiada no chão.
I – Como assim, menininha? Não estou entendendo a cena – sei pai entrou de repente na sala com um cacete?! Como era este cacete?
M – Era grandão, igual ao do Barney e do Fred Flintstone.
I – Sei. Ele estava vestido como?
M – De Barney. Então ele chegou pelas minhas costas, eu não vi, ele chegou por trás e... plaft! Arrumou o cacete com toda força em mim, e eu morri.
I – O que você sentiu, criança?
M – Eu morri.
I – Antes de morrer, o que você sentiu?
M – Doeu, doeu, doeu... e eu morri.”


Chorou muito.
De repente, as coisas começaram a fazer algum sentido para ela. Os dolorosos raios e relâmpagos eram traços, sinais que emitia para si mesma desde um tempo e uma sala muito antigos, vividos na infância. Memória insuportável, que enterrara no lugar mais escondido, remoto, recôndito que pudera encontrar: no mesmo túmulo onde há décadas sepultara a menina morta.
Lembrou-se de uns versos: “Assassinei a criança / Que tinha dentro me mim.” Mas não se lembrou do autor dos versos.

[Este texto integra a blogagem coletiva “Em Defesa da Infância”, proposta pelo blog Diga não à erotização infantil. Dia 18 de maio foi o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, e hoje, 25, é o Dia Internacional das Crianças Desaparecidas. Vários blogs aproveitaram essas datas para postar imagens, textos e sons sobre esses assuntos infelizmente tão atuais. Desculpo-me por não ter postado o selo da blogagem, mas, retornando de viagem longa e me reorganizando ainda, só reparei nele há pouco.]

terça-feira, 19 de maio de 2009

Cadê ela?


a verdade

A verdade mora
numa casa antiga
de uma rua estreita:

de dia ela chora
de tarde nem liga
de noite se enfeita.

Então, vai à luta:
bebe muito, escuta
bobagens sem fim.

Insiste inda assim
muito seriamente
em dançar do seu jeito,

quase com respeito
por quem a assedia.
Nunca perde o viço

porém esclarece
a quem já comece
a querer namorá-la

que, rainha da sala,
não tem compromisso.

Leandro Konder

[Filósofo, cientista político, professor universitário no Rio de Janeiro, autor de diversos livros, Leandro Konder tem sido um dos melhores pensadores de esquerda no Brasil. Curioso, inquieto, questionador de prontas e fáceis verdades, inclusive as do marxismo de que é adepto, foi também romancista e, de vez em quando, bom poeta, como prova o poema acima. Este poema integra "Memórias de um intelectual comunista" (Editora Civilização Brasileira), sua autobiografia, que terminei de ler hoje, emprestada de meu amigo Geraldo de Majella. Gostei do livro, pela clareza, honestidade, elegância e bom humor com que Leandro Konder apresenta a própria trajetória e, ligada a ela, a de uma determinada geração de intelectuais brasileiros. O livro é uma delícia, comprovando, mais uma vez, que ser intelectual não tem nada a ver com ser chato.]

domingo, 17 de maio de 2009

Miseravelmente derrotada pelo teclado francês!


Amigos, amigas, juro que a minha intenção era ótima: ir registrando aqui no blog, à medida que aconteciam, experiências e impressões da viagem maravilhosa que estava fazendo a Portugal e à França, em abril. Até que comecei bem, postando as primeiras sensações de Lisboa, aquela vertigem de se reconhecer no país do outro. Ao chegar à França, ainda postei um pequeno texto.
Até ser completamente derrotada pelo mais letal inimigo dos interneteiros: o teclado francês (azerty), muito — muuuito — diferente do teclado que usamos. Francês gosta de ser original, eu sei — mas precisava criar um teclado diferente do que o resto do mundo usa? Nos cibercafés, eu teclava “Estou no sanatório de Saint Rémy, onde Van Gogh se internou voluntariamente...”, e aparecia na tela algo como “Erwwg nh swnwyu...”. Demorava tanto tempo para eu corrigir o texto, ou para tentar escrevê-lo corretamente — tempo pago em euros —, que logo desisti. Além disso, não é em todo lugar, como aqui, que havia cibercafés. Eles eram raros no sul da França — pasmem!
Assim que cheguei ao Brasil, tive de me submeter a uma cirurgia, que me imobilizou a mão esquerda. Ainda não tirei os pontos, mas já consigo teclar estas bem traçadas linhas (pois no teclado internacional he he), pra ir matando as saudades de vocês. Prometo recuperar o tempo perdido, não à maneira de Proust, mas à minha mesmo: relendo os textos atuais e antigos dos blogs amigos e postando frequentemente. Beijos!

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