Quando eu me desespero de chorar, ela chega.
O meu país do leite nasce no bico do seio dela. Corredeiras de leite deslizam suavemente, sem parar, e me envolvem, me abraçam, me acalentam, me afagam, me dão as boas vindas ao mundo. Às vezes mergulho, enfiando a cabeça aqui, emergindo lá adiante, em leite banhado. Felicidade solar. Eu me entrego nu às correntezas que me entram pela boca, perninhas pra cima, brincando com os pés soltos no ar, sorridente.
Os seios dela me nutrem, me limpam, amparam, ungem. Como todo recém-nascido, sou cego. Minha boca, nariz, ouvidos, minhas duas mãozinhas e meu coração desprotegido vão aos poucos desvendando universos. Tateio nervuras, sinto calores, ouço ploc! bin chup chup inch cloc. Cheiro talco, alecrim - cheiros dela ou de mim? Descubro carocinhos de arrepio, me inebrio nos seus vales, invado temperaturas, as gotinhas de suor que brotam da pele dela umedecem também a minha pele, luz, a textura e o sabor inconfundíveis do leite e aquelas duas magníficas alturas que terminam em picos dentro da minha boca. O mundo dos seios dela. O mundo nos seios dela.
De uns meses para cá, sinto que nem sempre ela vem. Mesmo quando eu me desespero de chorar, às vezes ela não vem.
Em lugar dela, vem a vó. Eu não quero a vó, eu só quero ela, o meu país do leite nasce dos seios dela. A vó não tem seios, já procurei. Carrega só dois sacos murchos, ásperos: vazios.
A vó me dá sopa. Salgada e verde esta sopa, cheia de pedacinhos.
— Come, menino. O sal do mundo.
Antes eu cuspia tudo, puuuuf! na cara da vó. Agora como a sopa. Aprendi que há coisas piores, como fralda molhada e a falta danada que ela me faz.
Quando ela chega, renasço. Ultimamente, só aparece à noite. Chega tão tarde que eu, cabeça espremida contra as grades do berço, estou dormindo. Ah! mas acordo assim que escuto os passos macios, o perfume de alecrim enche o quarto... brota luz do corpo dela, ilumina o escuro: minha vida transformada em alegria. Ela traz os cabelos molhados, sinto quando se inclina sobre mim no berço, as pontas roçando o meu narizinho. Brinca com as minhas mãos, faz cócegas na minha barriga, me pega no colo, me carrega até a cadeira de balanço, me aconchega, amolecido, junto a ela. Desata a blusa, e eu mamo. Conectado a estrelas.
Meu país do leite é bom, gostoso, cheiroso, povoado de alegres burburinhos. Dali sou transportado de volta até o útero, minha primeira, mais secreta morada. Retorno a um tempo arcaico, atemporal, um tempo líquido quando eu ainda não sabia quem era eu nem quem era ela, o que era dela e o que era meu, nós dois um só, ela-eu. Existiam apenas vácuo, água, calor e aquele silêncio atento, raramente rompido por barulhinhos da barriga dela - da barriga dela, ou da minha?
Esse tempo assim antigo existiu antes da extraordinária viagem que um dia realizei por dentro do corpo dela. Viagem desatinada por seus rios, regatos, ribeirões, riachos; por seus igarapés secretos, canais, furos, calhetas; por suas cataratas, corredeiras, cachoeiras, seus flúmens de vapor e névoa que me transportaram até o mundo cá fora. O mundo! chicotes de luz, ferro frio, espinho e dor da palmada: ruptura.
Ela tem andado doente. Deitada, dor de cabeça, vomita.
— "Mamãe dodói", a vó me fala.
Se ela está dodói eu também estou, se ela está doente o meu corpinho também dói, se ela está doente eu... choro. De pena dela, e da falta que ela me faz.
Terror de perdê-la. À noite, sozinho no quarto escuro, sonho com um monstro imenso de olhos verdes e dentes afiados que me devora. Eu, sozinho no mundo.
— Mamãe dodói?, pergunto a ela.
Ainda de cama, ela sorri pra mim. Réstias de cor, luz do sol, areia branca, amor! Quanta alegria! Ela me abraça, me põe em cima da barriga, rola comigo na cama, desmancha os meus cabelinhos. Festa no céu, balacobaco, azul do mar - ela voltou, voltou! Dentro do abraço dela eu me desvaneço, esqueço aqueles dias de olhos fundos, choro, doença, vômitos. Quero abrir a blusa dela, busco com sofreguidão seus seios, desejo de volta o meu país do leite, ah! infinitas corredeiras, seiva da minha vida.
Com um gesto firme, ela me afasta. Me oferece não o bico do seio, mas um bico falso, atado a um vidro ou plástico. Com um safanão, atiro longe a mamadeira. Fujo rápido dali. Desnorteado. Desprezado. Traído. Quero ficar longe dela.
Nos últimos tempos, ela apareceu com um cheiro novo, esquisito, na boca. Seu rosto cresceu. Os cabelos perderam a forma. As pernas engrossaram. Sua linda boca parece inchada.
— Mamãe dodói?, vivo perguntando a ela.
Horror de perdê-la. Já basta ter perdido os seios dela! Já basta ser obrigado a mamar no bico falso, aquele que não tem o gosto dela, o que jamais me transportará até o país do leite.
Eu não posso perder o que me resta dela.
— Mamãe dodói?, vivo lhe perguntando.
Ela me dá um abraço tão apertado que eu quase me acalmo. Mas meu corpo grita alerta. Sento na cama, de um pulo. Aperto a barriga dela:
— Grande!
Ela me beija, me afaga:
— Aqui dentro tem um neném, um irmãozinho pra você.
Grita o galo, desandam as rodas do mundo. Tesouras. Lanças. O que foi feito do mundo? Buracos no peito. Arranhões. Gelo, confusão. Alfinetes. Rochedos altos. Estridência. Ossos. Dor. Corpo coberto de chagas, que invadem a alma.
Eu não respiro. Vou morrer.
Mijo nas calças, na cama, na barriga dela. Mijo no mundo.
Desço rápido do berço. Ultimamente aprendi a dar esse impulso com a bunda – bem forte, se não, caio pra trás: passo a perna sobre a grade, e escorrego pelo lado de fora, mãos firmes, pra não me esborrachar no chão. Corro até o quarto dela. Já conheço de cor esse caminho colorido da alegria.
A cama onde ela dorme sob o sol das manhãs de domingo é quente, macia e branca. Sou livre ali, passarinho. Nossas brincadeiras de domingo não têm hora pra terminar. Eu não preciso tomar sopa verde nem tenho de sugar bico falso. Fico quietinho ali junto dela, chupando o dedo. Deslizo devagar a minha outra mão por seus cabelos, rosto, pescoço, colo, seios, o corpo dela esquentando o meu.
Quando ela abre o olho, a gente rola na cama pra lá e pra cá, pra cá e pra lá, a gente pula na cama, a gente canta, e como eu sempre canto errado a gente ri, a gente ri cada vez mais alto. Ela joga a cabeça pra trás e abre a boca. Fica bonita assim, sob o sol das manhãs de domingo.
É verdade que Ele também está lá. Não posso vê-lo, mas sinto sua presença. Ele vigia a gente o tempo inteiro. É como meu monstro de olhos verdes e dentes afiados, que também não vejo, mas dorme no berço ao meu lado. Quando deito a cabeça na barriga dela, quase posso sentir a respiração desse ser invisível, que eu odeio.
Ele mora ... lá! Na minha mais secreta morada, naquele lugar especial, único no mundo, onde eu e ela éramos um, o tempo decorria líquido e o espaço, profundamente terno, onde o silêncio significava amor. Ele habita o lugar de onde eu vim, a minha origem! que, portanto, é minha, nunca dele. Não faço a menor idéia de como esse clandestino invadiu e ocupou o meu lugar no mundo.
Mordo, chuto, soco a barriga dela. Quero que Ele morra.
Hoje a vó resolveu enfeitar a casa.
— Vó, festa?
— Não, não – é que ela logo vai chegar aqui com seu irmãozinho. Vamos deixar a casa bem bonita pra eles!
Não entendo a vó. Se ela sempre chega com Ele, pois Ele mora lá dentro da barriga dela, no meu lugar! Onde ela vai, carrega Ele junto.
Eu não quero casa bonita. Não quero enfeite. Não quero irmãozinho. Odeio irmãozinho. Não quero a vó. Eu só quero ela. De volta pra mim, a blusa desatada, me oferecendo os seios. Eu quero o meu país do leite!
Não acredito! Ela chega em casa, carregando... o quê?
Abaixa-se junto a mim:
— Olhe! O seu irmãozinho! Nasceu!
Mas é... Ele! Pulou de dentro da barriga pra junto dos seios dela!
Não, eu não quero. Joga Ele pra lá. Se livra dele. Eu detesto Ele.
__ E então, o que nós vamos fazer com seu irmãozinho, agora?
Estico o beiço:
— Joga da janela!
— Credo em cruz! – grita a vó, apavorada. — Décimo oitavo andar!
— Joga, joga!
Já experimentei tudo o que podia. Chorei, mijei, caguei, golfei, engasguei, acordei no meio da noite. Fiz tudo o que Ele sabe fazer. Nada adianta. Ralham comigo. Ele pode mamar nos seios dela – eu, não. Ele visita sempre que deseja a minha terra, o meu país do leite, de onde fui miseravelmente expulso e para onde nunca mais poderei retornar.
Já fiz gracinhas, cantei a música dela, dancei a dança da vó. Ninguém mais ri. Ninguém nem me olha.
Desço rápido do berço, dando impulso com a bunda. Corro mais uma vez até o quarto dela, meu antigo caminho colorido da alegria. A porta agora está sempre trancada pra mim. Espinhos. Não posso entrar. Choro, esmurro, arranho, dou pontapé, até, exausto, me encostar na porta e deslizar para o chão: encolhido, impotente. Do lado de fora.
Desta vez a porta do quarto dela está... aberta! Empurro. Meto o rosto. Entro.
Faz escuro, aqui dentro. Silêncio.
Aos poucos, meus olhos vão se acostumando à escuridão. Mas ela não está aqui. Onde ela está?
Subo na cama. Encontro... Ele! O Outro. O Intruso. O Clandestino da minha origem. O Usurpador de seios. O Ladrão do meu país do leite!
Observo-o com atenção. Ele é muito... pequeno! Magro. Fraco. Fininho. Não tem cabelo. Nem dente. Horroroso. Não sabe andar. Não sabe falar. Bobo.
Aperto a careca dele. Ele chora. Aperto de novo. Chora mais alto. Que bom!
Só sabe chorar, Ele. Bobão! Odeio Ele.
De repente, os passos apressados dela no corredor.
Desço correndo da cama, com Ele. Alcanço a janela um segundo antes de ela entrar no quarto.
("Intruso", de Janaína Amado. Regras para uso: Creative Commons.)